sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Como se o dia não fosse amanhecer...

Não sei se vocês já leram o livro Bridget Jones, No limite da razão. Tem um momento em que ela toma umas taças de vinho a mais e decide escrever cartões de Natal para os colegas de trabalho, amigos, etc. Descobre no dia seguinte, horrorizada, que acabou escrevendo e colocando no correio mensagens íntimas demais, reveladoras demais, no limite do indiscreto...

Num outro livro que li chamado Attentat, de Amélie Nothomb, Epiphane Otos, o protagonista, a criatura mais feia que já existiu, existe ou existirá sobre a face da terra, é apaixonado pela mulher mais linda que poderia haver. Um dia ele está num hotel no Japão em pleno e rigoroso inverno. O aquecimento do quarto está ligado, obviamente. Só que esse aquecimento pra ele é sufocante e não dá pra diminuir! Então ele quebra os vidros das janelas fixas e acaba congelando de frio. Acho que teve um ou outro gole de bebida pra esquentar, não lembro. O que eu lembro bem é que aquele frio todo fez com que ele perdesse a inibição e o senso de realidade e acabasse escrevendo (e enviando!) uma declaração de amor àquela que era sua melhor amiga (isso era o que ela pensava!). Não preciso nem dizer o barraco que deu...

Pois bem. Percebi uma coisa impressionante em mim mesma! Tal como Bridget Jones e Epiphane Otos (quanta pretensão) tenho também uma situação que libera geral a minha pena literária. Solta a franga do meu verbo! Roda a baiana dos meus substantivos e adjetivos. Verdade! Só que não tem nada a ver com a manguaça. Nem com o frio. Descobri que não posso escrever nada de madrugada...

Nem carta, nem bilhete, nem SMS, nem e-mail. Nem mesmo a mais inocente lista de supermercado!

Não sei o que acontece comigo, mas meus escritos da madrugada são, como dizer, perigosos... Vai caindo a noite e minhas palavras têm de ser lidas em tom mais baixo, quase cochichado. Ali pela meia-noite eu já reduzo, metaforicamente falando, o tamanho da fonte pra 10. Entre duas e quatro da manhã entra a fonte Script tamanho 8 e aí o bicho pega de vez!

Escrevo e-mails sussurrados, conto segredos, faço confissões. Falo de coisas que jamais diria à luz do dia, uso palavras que nunca materializaria na escrita, mas que durante a noite saem de mim sorrateiramente e vão se instalar nas linhas e entrelinhas dos meus escritos.

Quanto mais silêncio na casa, maior o perigo! Sei lá o que me passa pela cabeça ou que parte de mim adormece enquanto outra permanece, mas a verdade é que durante a noite eu amordaço o superego, solto as amarras do id e mando ver! A escuridão da noite me protege, me camufla. É como se o dia não fosse amanhecer...

Enquanto a tecnologia que eu usava era movida a celulose e canetas Bic, tudo bem. Felizmente os correios não funcionam de madrugada e eu dificilmente consigo enviar alguma coisa escrita sem ler novamente antes do cuspe final pra fechar o envelope. Mas aí chegou a Internet...

O mais apavorante é que, na madrugada, eu também leio pelo menos dez vezes antes de dar o golpe de misericórdia em forma de clique no botão Enviar. Mas esse diabinho interno que ganha liberdade nas horas mortas da noite fica enlouquecido de alegria com as coisas que produz e envia MESMO!

Depois das quatro da manhã, quando os primeiros passarinhos começam a cantar, o superego vai despertando, de olho remelento e tudo o mais, e volta pra botar ordem na casa. Mas ainda está meio bêbado de sono e, às vezes, o diabinho interior tem tempo de fazer passar um último segredinho.

Se eu não deitar imediatamente sei que não durmo mais. O canto dos passarinhos é a sirene que me manda pra cama, sem pestanejar! E o dia vem...

Na manhã seguinte eu acordo e corro pro computador, já com medo do que vou encontrar. Abro a pasta de mensagens enviadas e enrubesço (Marina, essa foi pra você!) só de ver os nomes dos destinatários, melhor dizendo, das vítimas escolhidas. “Aiiiiii, o que é que eu fui aprontar comigo mesma dessa vez?!” Releio as mensagens e quero que o espaço cibernético se abra num buraco negro pra eu me esconder! Vem uma vontade louca de me enfiar pelo fio do computador e sair pelo vácuo virtual catando as palavras que, infelizmente, já se espalharam pelos quatro cantos digitais e foram bater em caixas postais que, muitas vezes, devem ficar espantadas com o que recebem. “Mas o que é que essa louca está dizendo?”

Tarde demais. Foi. Alea jacta est!

Quando mando mensagens aos amigos, tudo bem. Muitos já me conhecem de longa data e estão acostumados às minhas esquisitices, ou acham que é só mais uma brincadeirinha. Mas ultimamente, dei pra escrever de madrugada a amigos e amigas recém-feitos. Criaturas virtuais na minha vida, com quem troquei apenas algumas mensagens. Durante o dia! E aí, recebo uma pergunta inocente do tipo “tudo bem com você?” e respondo, às três da manhã, com quatro laudas cheias de sussurros e cochichos, filosofias baratas, perguntas retóricas e ditados populares reinterpretados. Chamem o Pinel! Tem uma maluca solta pela rede mundial!!!

O mesmo acontece em outros gêneros como scraps do Orkut ou esses textinhos que publico no blog. Que perigo!!! Pelo menos agora eu identifiquei esse problema e vou ser mais vigilante!

Só pra vocês terem uma idéia da calamidade, se minha mãe me mandar um e-mail perguntando, por exemplo, se eu posso fazer a sobremesa para o próximo churrasco de domingo, uma resposta em horário comercial seria:

“Tudo bem. Posso fazer uma Torta Floresta Negra ou um Strogonof de Nozes, o que será que fica melhor? Ah! Vou levar também aquela toalha de mesa que peguei emprestado, tá? Beijo Ju”

Depois que as crianças vão dormir e que a televisão pára de tocar as musiquinhas dos desenhos animados repetidas à exaustão, a coisa começa a mudar de figura:

“Claro que posso fazer a sobremesa pra adoçar nosso almoço de domingo, temperar com açúcar e com afeto nossas conversas preguiçosas ao redor da mesa... Pensei numa Floresta Negra, salpicada de cerejas... Ou no caramelo suave de um Strogonof de Nozes... O que será que combina mais com picanha e salada de agrião?

Aproveito pra te devolver aquela toalha de mesa rendada, que tantas vezes presenciou nossas comemorações familiares.

Muitos beijos.

Ju”

Duas da manhã. Silêncio total na casa a não ser pelo ressonar tranqüilo das crianças e, às vezes, não tão tranqüilo assim, do Vidal (nada que uma cutucada de leve e um “vira de ladinho” não resolva...).

“Sobremesa? É claro que faço. Com o maior prazer. Vou mergulhar nas páginas salpicadas de nódoas dos meus livros de receitas e encontrar a iguaria sublime e perfeita que vai encantar as papilas de todos nós. Vou percorrer as listas de ingredientes como quem lê poemas e encontra a palavra exata, o termo preciso em forma de sabor que aguça o paladar e faz reviver momentos perdidos da nossa infância...

Nesse exato instante me ocorreu a idéia de uma Torta Floresta Negra. A força do chocolate, entrecortada pela insolência voluptuosa das cerejas rubras, tudo recoberto e oculto pela neve do chantilly. Ou então, quem sabe, a cor quente de caramelo de um Strogonof de Nozes, a untuosidade sensual e aerada desse creme suave, interrompida somente pela surpresa crocante do fruto da nogueira...

Qual será, entre essas duas opções, aquela que formará o amálgama perfeito com a brutalidade da carne e seu sangue, em contraste com o picante e refrescante alívio das folhas de agrião?

Vou aproveitar a ocasião pra buscar no meu baú de lembranças e de enxovais aquela sua toalha de renda branca que fiz questão de pegar emprestada para usar num jantar especial aqui de casa. Ela já está lavada e alvejada. Novamente imaculada e pronta para cobrir a mesa e testemunhar a alegria de nossas ceias...

Bem diferente daquela outra toalha que você encontrou, um dia, toda enrolada e escondida, embaixo da escada do quarto de despejo. Esquecida em meio à poeira, amassada, enxovalhada, cheia de fungos e toda salpicada de tinta verde pra tecido. É, a criança que eu era não quis escutar os sábios conselhos maternos que diziam “Não vai pintar enfeites de natal em cima dessa toalha novinha!”. Ah, a inexperiência, a confiança pueril, a certeza de que as mães nunca têm razão, mesmo que em 100% das vezes, depois da cagada feita, a gente tenha de dar a mão à palmatória e a bunda às chineladas!

Sim, fui eu! Eu manchei de tinta verde aquela toalha...

Beijos envergonhados, mas finalmente livres desse peso na consciência que me atormenta há anos.

Sua filha, muito amada.

Ju”

Enviar. Clique!

Ops! Peraí. Que horas são? Ai meu Deus... Acho que minha mãe não lê esse blog. Quer dizer, lê! Mas é brincadeirinha, viu? Pura licença poética... E depois, aquela toalha nem era assim tão importante, era? Só um pouquinho, gente. Já tô meio passadinha em idade pras chineladas, mas fúria de mãe não arrefece com o tempo! Tenho de resolver esse probleminha. Vou procurar o endereço das Pernambucanas mais próximas e já volto!

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6 comentários:

  1. Peguei essa fresquinha né?
    Tá ótima.
    ô pena afiada, menina...
    Go.
    Quisera eu ter madrugadas assim...
    A última foi parturindo 2, Liz e Raul.
    Lindos...
    Hoje a ressaca.
    Bom de ler você.

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  2. Está ótimo Ju. O crescendo está perfeito, muito bem delineado e não se entrevia o final. Gostei muito. beijos

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  3. Ju, não podia deixar de conferir seu lindo dom de nos encantar com as palavras. Você escreve demais!!!!! Porque não escreve um livro???? Ta perdendo tempo. Essa sua criatividade com as palavras não pode ficar escondidinha só no mundo dos blogs. Eu já sou ao contrário, minha cabeça não funciona de madruga, começa dar meia noite, meu corpo não responde, os olhos teimam em fechar e os neurônios já foram dormir faz tempo!!!!! Beijão Ju.

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  4. Q coisa mais linda são as tuas crônicas, ñ "seja mais vigilante ñ", deixa este bicho solto na madrugada e nos delicie com seus escritos maravilhosos. Bjs.

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  5. Ai Ju! To amando este seu blog!Beijos Dinair

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