domingo, 11 de abril de 2010

Um trem facim dimais, sô!

Para Eugenio
... TAM TAM TAM TAM TAM TATATATÃ!

A musiquinha de edição especial do telejornal na TV fez o de sempre: girou todos os pescoços do ambiente na sua direção. Pescoços estes que sustentavam cabeças, que separavam orelhas, que sabiam que boa coisa não estavam por ouvir.

A polícia ainda não conseguiu esclarecer o mistério do bandido que anda aterrorizando as casas de repouso da cidade. Mais uma vítima foi encontrada hoje e o perfil se repete: mulher idosa, cabelos brancos, óculos, baixa estatura e tipo roliço, como todas as outras, em estado de choque. Esta se chama Emengarda e foi encontrada como uma múmia, enrolada em fraldas geriátricas. Como as vítimas anteriores, ela não consegue ainda dar depoimentos, mas seu relato não deve ser muito diferente daquele registrado pelas demais senhoras atacadas pelo bandido. Ou bandida. O malfeitor aparece quando a vítima está sozinha e veste roupa de cozinheiro, usa um aparelho que modifica a voz e também uma máscara com um rosto de algum chefe de cozinha. Na semana passada, quando D. Genoveva foi encontrada enfiada no seu andador equilibrado de cabeça para baixo sobre quatro urinois, o meliante usava uma máscara de Jamie Oliver. Já apareceu como Nigella Lawson, Claude Troisgros, Paul Bocuse e Ana Maria Braga. Apareceu também como Álvaro Rodrigues, Ofélia, Palmirinha e Tia Anastácia.

O modus operandi é sempre o mesmo: a vítima é surpreendida durante a noite, amordaçada e imobilizada. A partir daí sofre um interrogatório exaustivo que dura toda a madrugada. Nos últimos tempos elas têm sido também ameaçadas fisicamente com colher de pau ou rolo de macarrão. Já houve relatos do uso de espremedor de alho e descascador de legumes. As perguntas giram em torno de técnicas culinárias as quais todas as vítimas afirmam ter respondido, mas, aparentemente, isso não satisfaz o criminoso, que se irrita cada vez mais até que, nas primeiras horas da manhã, parte tão silenciosamente como entra, não sem antes deixar a vítima numa situação constrangedora, como foi o caso de D. Genoveva e o andador na semana passada, mas também D. Inácia encontrada de quatro, a prótese dentária colada com adesivo permanente em posição de mordida nas nádegas e os chinelos de tecido pendurados nas orelhas. Outra semelhança entre as vítimas é elas terem ligação direta ou indireta com o estado de Minas Gerais.

Como o facínora está sempre disfarçado é muito difícil qualquer identificação e a polícia acredita que...

TLEC!

Um par de olhos arregalados encarava o vazio da TV recém-desligada. Sons abafados partiam da boca amordaçada por um pano de copa bordado com moranguinhos.

Ouviu bem, D. Maria?

A apavorada senhora viu surgir diante de si a cara do Olivier Anquier que falava sem mover os lábios com aquela voz de pato.

Viu o que vai acontecer com a senhora se não colaborar? E então, D. Maria, a senhora vai ser boazinha, não vai?

Mmmmmmmmm mm mmm mmmmm!!!

A mordaça foi retirada com uma certa violência da boca da pobre senhora, que balbuciou com voz fraca:

Meu nome não é Maria, é...

Não me interessa o seu nome! – Olivier gritou sem aquele charmoso sotaque francês. A mordaça foi recolocada.

Nós temos tempo D. Maria. Temos toda a noite diante de nós. Como se diz por aí, quem tem pressa come cru e a noite é uma criança...

Parou de repente. Se não fosse a máscara seria possível jurar que tinha o olhar perdido no horizonte:

... e meu filho também é uma criança, a senhora está me ouvindo?

A mesa da cozinha foi golpeada violentamente com o batedor de ovos, deixando bem claro o estrago que poderia ser causado caso tivesse sido na cabeça da aterrorizada senhora.

Uma criança! E para uma criança de nove anos o pai e a mãe são sempre herois! HEROIS! Isso significa que eles são capazes de tudo! SEMPRE! Não há lugar para o fracasso de um pai ou de uma mãe na cabeça de uma criança, D. Maria. NÃO HÁ!

Olivier com a voz de pato andava agora de um lado para o outro, agitando freneticamente o fouet, batedor de ovos em bom francês.

E, além de ser responsável por ter dado a vida ao meu filho, eu sou Chef de Cuisine E TAMBÉM Chef Patissier, a senhora sabe o que é isso?

A pobre mulher amordaçada com o pano de moranguinhos e amarrada à cadeira com o fio elétrico do mixer fez um sinal negativo com a cabeça, os olhos ainda arregalados e marejados de lágrimas.

Como eu imaginei. Vous êtes nulle, nom de Dieu!

Agora ela começava a reconhecer o Olivier...

Eu passei meses estudando no Cordon Bleu de Paris, está me ouvindo? Meses! Fiz os cursos completos de Chef de Cuisine e também de Chef Patissier o que significa que eu garanto um jantar de l’apéritif au dessert, impeccable! Do início ao fim! Até curso de sommelier eu fiz. Faço casamentos que nem a morte separa entre minhas refeições e o vinho. Sei aguçar as papilas de qualquer ogro que me apareça pela frente. Do champagne ao caviar, da baguette ao fois gras, le chef, c’est moi! Voilà! O chefe sou eu!

O sinal da mulher, dessa vez, foi afirmativo, mas os olhos continuavam esbugalhados.

Então, é simplesmente IMPENSÁVEL que meu filho peça que eu prepare uma comida e que esse prato não seja simplesmente DIVINO, compris? DI-VI-NO!

Ele aproximava a cara do Olivier ameaçadoramente do rosto da frágil senhora e, se não fosse o lindo sorriso de dentes brancos que a máscara exibia, ela teria tido uma indigestão.

Mas isso aconteceu comigo, D. Maria. Comigo! Eu, que recebi três estrelas do Guia Michelin. Eu, a Gisele Bündchen das panelas. Eu, o Pelé das escumadeiras. Moi!

Com um soluço seco o bandido abandonou os braços ao lado do corpo, deixando cair os ombros, numa demonstração de total desilusão. A bondosa vovó lhe faria um cafuné na cabeça e lhe daria um beijinho na testa se não estivesse amarrada e amordaçada.

Olivier grasnava de novo. Mesmo com o timbre de pato, a desprotegida mulher sentia que aquela voz era melíflua, pegajosa como uma calda de caramelo, escorregadia como uma coxa de galinha untada em azeite extra virgem, traiçoeira como o ponto do creme inglês:

Portanto, D. Maria, acho bom a senhora colaborar. A senhora não vai querer que eu perca a paciência, vai? – ele continuou, a agitação crescendo novamente como um pão fermentando antes de ir ao forno – Consultei livros, vasculhei bibliotecas de confrarias, escrutinei a internet. Investiguei centenas de fóruns, percorri milhares de blogs, assisti à horas e horas gravadas do Mais Você! Testei uma por uma das receitas que encontrei, apliquei meticulosamente os conselhos que recebi e NADA FUNCIONOU! NADA!

A penalizada senhora balançava a cabeça de um lado para o outro, começando a simpatizar com aquele Olivier. Ele continuava a falar, a angústia transparecendo na sua voz de pato:

Meu filho está me pressionando, já estou no limite das desculpas que posso dar! O desespero tomou conta de mim e eu tive de apelar para essa atitude extrema: a senhora e todas as outras que se recusaram a colaborar! Então, D. Maria, abra esses ouvidos como se abre um mexilhão e responda de maneira precisa às perguntas que eu vou lhe fazer. De maneira PRECISA, compris? Isso significa que não vou aceitar medidas como um punhado ou a olho, entendeu?

A amordaçada senhora se afastava o quanto podia daquele Olivier que a ameaçava, fouet em punho, gostas de suor começando a brotar na testa que parecia agora uma taça de sorvete fora do congelador. E as ameaças continuavam:

A senhora faz tricô pelo que estou vendo... E também gosta de bingo! Ora veja... Pois se não houver colaboração da sua parte, saiba que clara de ovo é uma excelente cola, D. Maria, e eu vou deixá-la coberta da cabeça aos pés com essas cartelas de bingo coladinhas umas às outras, além de amarrá-la com essa lã como se faz com um frango, a senhora está me ouvindo?

A cabeça amordaçada fez um nervoso sinal afirmativo. Ela agora tremia como gelatina.

E nem queira saber o que vou fazer com essas agulhas de tricô, D. Maria! Nem queira saber! Mas comece, desde já, a pensar em frangos de padaria. Garanto que isso não vai ser legal, portanto, não me provoque!

O ambiente começou a ficar quente como forno pré-aquecido. Ele pegou uma caixa de ovos e disse:

Preste muita atenção: eu vou lhe fazer uma pergunta e, em seguida, vou retirar essa mordaça. E, então, a senhora vai me responder DE MANEIRA PRECISA, como combinamos, enquanto eu tomo notas nesse caderninho, d’accord?

A senhora não sabia patavina de francês, mas teve certeza de que não havia outra atitude possível a não ser concordar com o chef. Balançou a cabeça rapidamente, olhando para as agulhas de tricô sobre a mesa e não querendo nem imaginar o uso que aquela criatura podia fazer delas.

Muito bem. Hoje à tarde, quando meu filho chegar da escola, vai encontrar uma iguaria muito especial sobre a mesa. Vai comer tudo e jamais, eu disse JAMAIS, vai dizer novamente que aquilo que fazem as mães ou as empregadas dos coleguinhas dele é que é bom. A partir de hoje EU serei expert nesse acepipe! Sem qualquer concorrência!

Mmmmmmmm – a cabeça subiu e desceu algumas vezes.

Enquanto falava, Olivier quebrava os ovos e separava calmamente as claras em uma tigela colocada ao lado das cartelas de bingo, numa atitude explicitamente ameaçadora. Acabou de quebrá-los, agitou levemente as claras com o fouet num gesto preciso e, ao lado da pilha de cartelas e da tigela com claras, dispôs meticulosamente as agulhas de tricô.

Olivier curvou-se sobre si mesmo até ficar com os olhos furados da máscara na altura dos olhos aterrorizados da meiga senhora, pegou um bloco, uma caneta que ficou suspensa no ar e falou com falsa calma:

Então, D. Maria, me diga: como é que se faz bolinho de chuva? – e puxou o pano de moranguinhos, removendo a mordaça que sufocava a pobre mulher.

Ela tossiu algumas vezes, pensou um pouco e depois começou a gaguejar, aliviada com a simplicidade da pergunta:

Bem... eu pego uma tigela, coloco um tanto de leite e outro tanto de farinha, quebro dois ovos. DOIS! – olhou para Olivier e repetiu o número para deixar bem claro o quanto estava disposta a colaborar com a exigência de precisão do seu algoz – aí coloco umas colh... er... é... três! Três colheres de açúcar, uma pitada de fermento e... mmmmmmmmm!

A mordaça voltou a sufocar a apavorada senhora. Se ela pudesse ver os olhos por trás da máscara de Olivier pensaria imediatamente em escalopes sendo flambados no conhaque. O pato grasnou:

Um TANTO de leite e outro TANTO de farinha, D. Maria?!!! Uma PITADA de fermento, putain?! Em qual volume do Larousse a senhora já viu alguma receita que pedisse um tanto de alguma coisa, bordel de merde! Já vi que a senhora, como todas as outras, também não está querendo colaborar – disse, enquanto pegava as agulhas de tricô sobre a mesa da cozinha...