Preciso comentar uma notícia que li esta semana. É a seguinte: sindicalistas do maior sindicato de pilotos de avião São Paulo protestaram publicamente queimando manuais de procedimentos em praça pública. Eles alegam que os tais manuais cerceiam a liberdade de atuação e a autonomia de cada piloto que, dentro da sua aeronave, quer ter a liberdade de conduzir seu trabalho da maneira que acredita ser a mais adequada.
Tais pilotos passaram por um curso superior de formação de pilotos, obviamente. Nesse curso eles tomaram contato com diversas teorias sobre a aviação, discutiram inúmeras abordagens sobre psicologia aplicada aos passageiros, além de terem estudado profundamente a história da aviação e a organização geral das empresas aéreas. Claro que tiveram disciplinas práticas, nas quais era esperado que recebessem instruções precisas e objetivas sobre como pilotar um avião, mas, com algumas exceções, mesmo nessas disciplinas os professores acharam mais interessante e proveitoso para os futuros pilotos discutir outras tantas teorias, principalmente as marxistas, porque todo mundo sabe que a burguesia e as elites tentam desde sempre dominar o povo oprimido e cabe aos pilotos fazer passar essa mensagem a seus passageiros, provocando com isso a tão desejada transformação do mundo.
Vocês não estavam sabendo disso? Não tinham visto essa notícia? Na verdade, eu também não tinha. Ela não foi destaque nacional e eu só acabei sabendo por puro acaso quando folheava uma revista de abril passado numa das intermináveis esperas em consultórios a que tenho sido submetida. Estou atrasada para comentar o fato, reconheço. Só que ele é tão relevante que não podia deixar passar.
Apesar de a revista ser do mês de abril, não era do dia primeiro, mas não resisti! Antes que meu singelo texto provoque novo caos aéreo (olha a pretensão!) vou confessar: é brincadeirinha!!! Os pilotos de avião jamais fizeram um protesto estapafúrdio desses, onde já se viu? Continuem sossegados. Todos podem entrar nos aviões tranqüilos de que os pilotos sabem exatamente como fazer para conduzir os aparelhos, conhecem perfeitamente o local de onde partem, têm certeza absoluta do destino aonde devem chegar e que os procedimentos a serem adotados no percurso estão claríssimos para todos. Inclusive, se um piloto tiver um mal súbito (o que pode acontecer com qualquer humano), outro piloto assumirá o comando e tudo estará lá: todos os procedimentos, as metas, etc. Antes de entrarem em uma cabine eles estudaram anos a fio e o fato de terem manuais de procedimentos não diminui em nada a capacidade intelectual deles, nem os impede de serem criativos para tomar decisões em momentos de crise nem, de maneira nenhuma, tira a autonomia desses profissionais. E, obviamente, mesmo que uma pessoa passe vinte anos ou mais da sua vida andando de avião todos os dias, ela não se sente capaz de pilotar um avião, nem mesmo um teco-teco, não é mesmo?
Respirem aliviados, meus caros bleitores, esse absurdo completo não acontece no cenário da nossa aviação. Ufa!
Mas ele acontece, exatamente assim, no cenário da nossa educação. A notícia que li realmente foi divulgada, mas não eram pilotos de avião os que protestavam queimando manuais de procedimentos, mas sim, professores do sindicato dos professores de São Paulo. Os argumentos do protesto eram exatamente os que descrevi no início: manuais de procedimentos para professores são absurdos, tiram a autonomia do professor, etc., etc., etc. Muitos podem estar pensando: Olha essa exagerada de novo! Um piloto de avião tem vidas nas mãos. O despreparo ou a falta de procedimentos claros pode causar uma catástrofe, matar pessoas, não tem comparação uma situação com a outra. Antes que aqueles que me acham exagerada me convençam de que estou realmente precisando de um ansiolítico, uma camisa-de-força ou ambos, farei algumas considerações e comparações que julgo interessantes. Depois, podem me mandar para o Pinel.
Um professor despreparado não corre o risco de eliminar vidas diretamente como os pilotos. Mas quem é que ensina os pilotos a pilotarem? Vamos um pouco mais adiante. Quem é que ensina os médicos a operarem, os engenheiros a projetarem, os advogados, futuros juízes, a julgarem? Quem é que forma as pessoas que, no futuro, serão vereadores, deputados, prefeitos, governadores e por aí vai? Surpresa! O professor! Portanto, o estrago de um professor despreparado não é imediato, mas existe e é tão silencioso e distante do fato gerador em si, que não há como imputar aos professores a culpa pelo despreparo de milhões de pessoas. E se formos retrocedendo na vida escolar, vamos ver que essa é uma culpa partilhada, pulverizada em anos e anos de sala de aula. A maior parte da nossa infância, adolescência e início de juventude passamos sob os cuidados desses profissionais que fazem o melhor que podem com os recursos que têm ou que, na maioria das vezes, não têm. Todos sabemos que temos uma escola cheia de deficiências e problemas, mas se hoje as coisas estão infinitamente melhores do que há alguns anos, não dá pra ignorar que temos ainda um caminho igualmente infinito pela frente!
Agora que já não ouço mais os protestos de quem me acha exagerada, começo a escutar os balbucios de quem diz: E quem é ela para sair criticando de maneira tão mal-humorada essa classe sofrida que trabalha demais e ganha de menos? Peço que esperem mais um minuto antes de atirarem pedras nessa Madalena aqui, que de arrependida não tem muito.
Sou professora. Há quinze anos. Comecei no ensino superior e, tirando a faixa etária que vai da primeira à sétima série do ensino fundamental, o resto já andou pelos meus livros de chamada. Da pré-escola, passando por alunos de oitava série, ensino médio, ensino superior, até a pós-graduação, mas também alunos de preparatório para concursos públicos, treinamento empresarial, treinamento profissionalizante, curso presencial ou à distância e, até mesmo, curso de artesanato, já tive todo tipo de aluno nas minhas de salas de aula.
Faço aqui um mea culpa e confesso que quando comecei nessa carreira não tinha tido formação alguma! Mas pertenço a uma família que é uma verdadeira dinastia de professoras e, além disso, dos meus vinte e quatro anos na época em que comecei, tinha passado pelo menos vinte e dois deles dentro de uma sala de aula, portanto, acreditava que sabia o que fazer! Se de médico e louco todo mundo tem um pouco, de professor, muitos acreditam que têm tudo. Mais ou menos como o viajante que, de tanto viajar e observar o piloto, pensa que pode pilotar o avião. Vocês acham que vai ser uma sorte danada se esse avião chegar inteiro ao destino? Pois é! Meus aviões, em melhor ou pior estado, chegaram ao destino. Mas o que aconteceu depois? Estremeço só de pensar que um dos meus alunos pode ter feito parte da equipe que desenvolveu algum sistema de controle de tráfego aéreo por aí e que, em parte por despreparo meu e de outros professores que teve na vida, acabou construindo um programa de computador que venha a falhar.
Por acreditar que precisava de formação para continuar a ser professora, fui estudar Educação. Fiz uma especialização em Didática, depois um mestrado no qual foram discutidas questões de ensino e aprendizagem, fiz um curso de formação de professores com duração de seis meses e agora estou terminando um curso de Licenciatura, ou seja, um curso que coloca, definitivamente, um carimbo na minha testa e no meu currículo: professora. Não sou uma sumidade no assunto, mas considero que vivi razoavelmente por dentro e por fora essa questão da educação para me achar no direito de, muito prepotentemente, dar minha opinião.
Como seres humanos, vivemos uma eterna caça às bruxas, procurando sempre os culpados pelo que acontece. Sou humana, portanto, aproveitando que hoje é 31 de outubro, dias das bruxas, vou colocar meus gravetinhos em algumas fogueiras.
Tem o culpado óbvio, ululante e evidente, o que sempre foi reconhecido como carrasco do ensino de qualidade, ou seja, o governo e seus investimentos pífios, salários irrisórios, infra-estrutura medíocre, e blá blá bla. Isso tudo é verdade e já foi discutido por quem tem muito mais autoridade no assunto do que eu. Vamos passar rapidamente ao próximo algoz da educação: o próprio professor! Como? Sim, infelizmente...
Sou paranaense e há alguns anos sei de uma iniciativa do governo do estado com o objetivo de propiciar formação aos professores. Ela acontece de diversas formas, seja como incentivo salarial para quem faz pós-graduação, seja na promoção de semanas de formação num local chamado Faxinal do Céu. Nunca fui à Faxinal, não sou professora do estado, mas vou contar o que já vi e ouvi por aí. Preparem-se para fortes emoções!
Tem professor que paga para que outras pessoas façam a monografia de conclusão de seus cursos de pós-graduação. Aliás, não paga somente a elaboração da monografia, mas também a dos outros trabalhos que deveria fazer durante o curso. Tem professor que se recusa terminantemente a ir para Faxinal participar dessas formações. Tem professor que vai, mas boicota. Fica no quarto dormindo, foge das atividades, ou até comparece, mas fica batendo papo. E ontem, conversando sobre esse assunto com uma amiga cuja mãe é professora da rede municipal de ensino, soube de algo que me deixou estarrecida. No intuito de promover inclusão social, alunos com alguns tipos de deficiência, como a auditiva por exemplo, não são mais enviados para escolas especiais, mas freqüentam escolas regulares. Portanto, os professores devem participar de um curso de formação em Libras, a língua dos deficientes auditivos. O instrutor de um desses cursos na cidade de Curitiba é deficiente auditivo e, embora fale, tem uma pronúncia diferente daquela de uma pessoa considerada normal. Lembro que aqueles que estão sentadinhos nos bancos são todos professores, mas o que alguns deles fazem é ridicularizar a forma de falar do instrutor ou insultá-lo quando ele está de costas e não está ouvindo o que seus diletos alunos dizem! Eu não sei nem que sentimento me invade quando ouço histórias como essas! Dentre os muitos grupos de alunos que tive nessa vida, houve alguns formados só de professores e também de futuros professores (alunas de um curso de Pedagogia). Posso afirmar que, especialmente esse grupo de alunas de Pedagogia, está nos primeiros lugares na minha lista particular dos piores grupos de alunos que já tive na vida!
Não! Não são todos assim, graças aos céus de Faxinal e do resto do universo. Novamente, vamos respirar aliviados. Mas se eu, que não tenho nada a ver com tudo isso, não estou dentro do ensino público, nem do município nem do estado, sei dessas aberrações, quantas mais não acontecem por aí? Tremo, agora mais fortemente, só de imaginar!
Portanto, mesmo quando o governo faz alguma coisa, ainda que não seja a melhor coisa, os próprios professores boicotam. Não participam, nem que seja para criticar e propor outra solução. Como criticar aquilo do que não se participa? E o que dizer das pessoas que queimam manuais de procedimentos em nome do cerceamento de liberdade? Era uma iniciativa do governo de São Paulo no intuito de padronizar o ensino, estabelecendo metas e objetivos, mas os professores se sentiram afrontados!
Quero deixar muito claro que defendo até meu último fio de voz o direito que os professores teriam de questionar o manual. Eles poderiam até mesmo se reunir para criar um manual, mas jamais poderiam se opor ao uso de um. E essa rebeldia vem de onde? Da Universidade!
Quando estamos na faculdade, em teoria aprendendo a ser professores, grande parte do que fazemos é isso mesmo: teoria! Teorizamos sobre tudo, estudamos os filósofos, os pedagogos. Conhecemos o percurso de Emília Ferreiro, lemos as conclusões a que chegou Maria Montessori, discutimos embevecidos as teorias de Piaget, Skinner, Pavlov, Carl Rogers, Vigotski e tantos outros. É uma base teórica de profundidade inquestionável. Tudo isso nos é passado, em alguns casos, sob o olhar constante Dele, o maior, o supremo, o poderoso, salve, salve: Marx! Só que o pobre do Marx, acorrentado e amordaçado, limita-se apenas a arregalar os olhos, provavelmente marejados de lágrimas, e observar o que se faz e diz em seu nome. Digo isso porque acredito que foram pouquíssimos aqueles efetivamente leram Marx, ainda que traduzido. E quando digo pouquíssimos imagino que esse número se aproxima perigosamente do zero. Todos falam de Marx e de suas teorias a partir de reinterpretações das interpretações dos comentários das resenhas que foram feitas. A partir de um resumo de sua obra.
Estou terminando uma licenciatura depois de um curso de formação, um mestrado e uma especialização em didática e, de verdade mesmo, com algumas honrosas e recentes exceções, raríssimos foram os professores que, em sala de aula, me explicaram COMO dar aula, quais são os procedimentos a executar de tal forma que eu levante vôo com minha classe daqui e chegue sã e salva lá onde é o meu destino, passando esse grupo de passageiros da vida às mãos de outro piloto-professor, o qual saberá os procedimentos a seguir e assim por diante. Aprendi teorias e agora tenho total liberdade para agir como quiser quando fechar a porta da minha sala de aula. Como fazer? Isso é problema meu, faz parte da minha autonomia, eu é que me vire! Se não fossem os poucos mestres nesses longos anos de formação que me deram alguns indícios de caminhos, estaria absolutamente sozinha, por minha própria conta e risco. Eu e meus alunos.
Atualmente sou professora de francês. Descobri, maravilhada, que no ensino de línguas estrangeiras são usados métodos e que tais métodos são acompanhados de guias pedagógicos. Esses guias, pasmem, são manuais de procedimentos que dizem exatamente o que fazer a cada passo e qual o objetivo de cada uma daquelas atividades. Não me sinto nem um pouco tolhida na minha autonomia, nem na minha criatividade e esta semana me emocionei quase às lágrimas por uma bobagem. Recebi os e-mails com o exercício proposto aos alunos que consistia em escrever um pequeno parágrafo sugerindo a um francês fictício um lugar em Curitiba, dizendo porque eles preferiam esse lugar e dando algumas indicações de onde ele fica. Há pouco mais de dez semanas esses meus alunos mal sabiam dizer bonjour e hoje escrevem pequenos textos e falam de seus gostos e preferências em francês! Mérito meu? Em parte, sim. Mas em grande parte é mérito do guia pedagógico que me orientou no espaço infinito de possibilidades no ensino de uma língua estrangeira e mostrou o caminho a percorrer. Eu sigo um manual e não sou menos autônoma, nem menos criativa, nem menos capaz por isso! Os anos de estudos, inclusive das teorias, são necessários. Só um manual não faz um professor, assim como, mesmo com um manual detalhadíssimo em mãos, vou continuar incapaz de fazer voar uma aeronave.
Governo, academia, professores... A solução para termos uma educação de qualidade e, como conseqüência, um país de qualidade, está em todos eles, mas está também na sociedade que mal toma conhecimento de protestos absurdos como o dos sindicalistas de São Paulo. Com esse tipo de atitude, tal sociedade deixa que ela mesma e seus filhos sejam conduzidos por pilotos que torcem o nariz para os manuais de procedimentos. Fico curiosa em imaginar qual seria a reação dessa mesma sociedade se minha história surreal do início fosse verdade, ou seja, se o protesto fosse mesmo dos pilotos de avião...
Claro que, mesmo da forma como as coisas estão, chegaremos a algum lugar. Mas tremo descontroladamente da cabeça aos pés ao imaginar aonde poderá ser!