domingo, 13 de fevereiro de 2011

Quem tem medo de tecido importado?

Sei que publiquei aqui, dia primeiro de janeiro, meu desejo de ano novo que era o de trazer de volta as letrinhas pra minha vida. E depois, sumi!

Mas esse desejo lançado aos ventos virtuais realmente se concretizou e as letrinhas voltaram pra minha vida em coisas que aparecerão durante o ano, só não tinha ainda materializado aqui nesse meu espacinho. Que injustiça a minha!

Então, pra me redimir, vou publicar um conto que já está escrito há três anos, mas ainda guardado, criando poeira digital... É mais uma aventura da Quiltéria, personagem que criei lááááá em dezembro de 2006, cuja vida é um patchwork de momentos das amigas quilteiras que fiz pelo mundo afora (e isso NÃO É força de expressão!). Dessa vez a história da Quiltéria foi inspirada em uma amiga de Porto Alegre, chamada Anete Soares. Juntei um comentário dela, com mais coisinhas minhas vividas aqui e ali, e deu isso que vocês vão ler.

Mais uma vez, texto longo demais pra blog, mas por enquanto é o que dá! Sempre dá pra imprimir, né? E agora tem iPad, iPod, iPhone, ai-quanta-coisa-nova-e-diferente-que-não-sei-usar que vamos ter de aprender a ler na tela mesmo. Não tem jeito!

Então lá vai: minha volta às letrinhas com minha adorada Quiltéria!

Quem tem medo de tecido importado?

Há tempos Quiltéria fazia patchwork e já era impossível passar numa loja de tecidos sem dar uma paradinha, comprar alguma coisa. Até que um dia, uma novidade chamou sua atenção:

- Olha! O que são esses quadradinhos?
- São tecidos importados. Sobras que eles vendem assim, em pedacinhos. São ótimos para trabalhos pequenos, aplicação. Isso sem contar com aquelas coisas lindas que a gente faz só com restinhos. E o preço é ótimo!
Quiltéria não cabia em si de felicidade! Junto com outras amigas quilteiras lançou-se à tarefa de selecionar quadradinhos nas pilhas imensas. Todos tão lindos! Como escolher?
Com muito custo ela conseguiu separar uns 50 pedacinhos de tecido e foi pra casa.
Chegou, espalhou todos pelo chão da sala e começou a separá-los em combinações. Dois a dois, três a três. Mudava pedaços de uma combinação a outra, e descobria, encantada, um caleidoscópio de possibilidades. Começou a imaginar as peças maravilhosas que faria assim que terminasse a cortina da cozinha.
Foi difícil achar motivação para acabar a cortina, tamanha era a vontade de começar a usar seus paninhos importados, mas ela conseguiu. Enfim, poderia se dedicar à divertida ocupação de cortar os tecidinhos para fazer pegadores de panela que combinassem com a cortina recém-terminada... Espere aí! Cortar? Ela teria de cortar os paninhos? Cortar em pedacinhos pequenininhos como fazia com os outros tecidos, os nacionais?
Olhou pesarosa para seus paninhos importados, alisou carinhosamente a pilha. Sentiu um peso no coração. Não dava! Impossível cortá-los. Os primeiros importados que ela tinha comprado. E era tão pouquinho...
Isso! Era isso que ela tinha de fazer: comprar mais quadradinhos, assim, se tivesse bastante, não teria pena de cortá-los.
Voltou à loja e, dessa vez, já teve de brigar com uma ou outra cliente por alguns dos pedaços de pano. Todas aquelas desesperadas! Que absurdo!
Chegou em casa com mais 50 pedacinhos e repetiu o ritual: espalhou pelo chão da sala junto com os 50 da primeira compra, olhou, separou em combinações. Alisou um por um, suspirou e pensou: Amanhã mesmo começo meus pegadores de panela!
Mas, no dia seguinte, onde foi parar a coragem? Quiltéria inventou mil desculpas pra não entrar no quarto de costura. Nem bem dava um passo e lembrava de uma coisa importantíssima e inadiável a fazer como, por exemplo, separar os enfeites de Natal que deveriam ser restaurados. Eles já estavam na Páscoa! É fechar o olho e abrir e já é Natal!
A coisa estava ficando grave. Quiltéria tentou várias vezes, fechou a cara, caminhou com olhar firme para a sala de costura, pegou o cortador, a régua e a placa. Colocou, decidida, o paninho sobre a placa, ajustou a régua, pegou o cortador e... largou tudo e saiu correndo, acabando de lembrar que não tinha ainda feito a lista de compras de presentes de Natal!
A situação estava ficando insustentável! Ela pediu conselho às amigas. Uma delas disse:
- Olha esse portal do patchwork na internet. É maravilhoso! Lá tem uma loja também. Entre na loja e compre tecidos importados, mas em metros! O problema é que os seus paninhos são muito lindinhos e pequenininhos. Você sabe que se usar, vai acabar. Se tiver em quantidade, isso não acontece. Vai por mim!
E assim ela fez. Estourou o saldo no banco por conta de vários metros de tecido importado que encomendou no site da loja. Na verdade, ela até se sentia mais leve, sem todo aquele dinheiro acumulado. Dinheiro é pra gastar, é ou não é?
Aguardou ansiosamente a entrega do correio com a encomenda que continha o seu tesouro. Quando eles chegaram, abriu o pacote rapidamente e namorou-os demoradamente. Depois lavou todos os paninhos, pendurou para secar, passou cada um imaginando os trabalhos incríveis que faria. Dobrou um a um, com cuidado. Fez uma pilha, agrupando-os em combinações. Desempilhou, empilhou novamente em nova ordem. Alisava-os suavemente, mas, a cada vez que estendia um deles sobre a placa, ajustava a régua e pegava o cortador, o suor começava a brotar na testa, os lábios fremiam, as mãos tremiam e todo mundo sabe que não dá pra cortar paninho com as mãos tremendo! Melhor deixar pra depois!
Quiltéria começou a se desesperar! Não dormia direito, tinha olheiras. José, seu marido, não sabia mais o que fazer para animá-la. Nem brigou por causa da conta estourada, tamanha era a tristeza da esposa.
Um dia, passeando pelo fórum da sua amada comunidade do Orkut, Quiltéria descobriu que não estava sozinha. Mal conseguiu conter as lágrimas quando leu o que a mestra criadora da comunidade, Candida, tinha escrito. Era uma série de recomendações para ter coragem de usar os panos importados. Quiltéria seguiu à risca cada uma delas! Mas nem assim conseguiu a coragem necessária para cortar seus importados. Será que teria de conviver pra sempre com eles dentro daquela mala? Sim! Nem em armário eles estavam mais. Incapaz de deixá-los num canto, como tinha sugerido a mestra, acabou por comprar uma mala. Seus paninhos importados tinham ganhado uma mala só para guardá-los. No fundo o que ela pensava era: Se a casa pegar fogo, eu consigo sair com essa mala e salvo meus paninhos! Era assustador!
Um dia, Quiltéria foi a um lanche com outras quilteiras. Elas comemoravam a visita de uma amiga que estava morando fora do país por um tempo. O encontro aconteceu numa confeitaria. Alguém um dia ainda vai provar que quilteiras e confeiteiras têm tudo em comum. A conversa não podia estar mais animada, todas querendo falar ao mesmo tempo, as risadas correndo soltas. Desse grupo fazia parte uma outra amiga, que também tinha morado por três anos fora do país. Foi quando o diálogo que mudou a vida de Quiltéria aconteceu:
- E você? Trouxe muitos paninhos da Europa?
- Nenhum.
Um coro, quase gregoriano, ocupou o lugar das risadas:
- NENHUM?!
- Nenhum! Quando viemos embora não tínhamos espaço suficiente na nossa bagagem para trazer as peças que eu tinha feito e também os tecidos que eu tinha comprado por lá. Então arrumei os trabalhos prontos junto com as malas que vieram conosco no avião e coloquei todos os panos numa caixa que enviei pra mim mesma pelo correio.
- Com TODOS os panos?
- Todos. Sem exceção.
- E daí?
- E daí que essa caixa nunca chegou...
- Você reclamou nos correios? Foi atrás?
- Claro! Mas ninguém sabia de nada, minha caixa com paninhos simplesmente se desintegrou no ar.
- Eram os panos nacionais, né?
- Não. Os nacionais eu dei de presente para minhas amigas que ficaram por lá. Nessa caixa tinha só os importados.
- Mas por que você não usou esses tecidos nos seus trabalhos?
- Não tive coragem... A cada vez que eu pegava um deles, desistia. Acabava usando um dos nacionais que tinha levado comigo. A grande ironia é que, se eu tivesse usado meus paninhos importados, hoje eles estariam aqui comigo, nos trabalhos que eu fiz. Estariam expostos na parede da sala pra que eu desse uma olhadinha neles todos os dias... Mas não usei. Não vou ver nenhum deles... Nunca mais...
Um silêncio sepulcral desabou com o peso de uma tonelada sobre a mesa, antes tão festiva.
Os olhares baixos. Os suspiros. De vez em quando uma delas inspirava e abria a boca como se fosse dizer alguma coisa, mas desistia. A história era escabrosa demais.
Quiltéria voltou pra casa e, assim que entrou, José estranhou sua expressão. Grave, decidida. Tentou perguntar o que tinha acontecido, mas não teve resposta.
Ela passou pisando firme por todos, entrou no quarto de costura e fechou a porta. Do lado de fora a família ficou escutando os barulhos: portas que abrem e fecham, cliques, claques, sons de coisas sendo rasgadas. Depois, a máquina de costura. Silêncio. Novamente a máquina. Silêncio. Máquina. Silêncio. Máquina...
Horas depois Quiltéria abriu a porta do quarto de costura, a respiração ofegante, os cabelos em desalinho, um brilho diferente no olhar. José pensou reconhecer novamente sua Quiltéria dos tempos de namoro e não se enganou. Ela caminhou na direção de José. Enlaçou o marido pelo pescoço, lascou-lhe um longo beijo e o empurrou para o quarto do casal.
Em cima da mesa, ao lado da máquina de costura, era possível ver o topo de um lindo painel com minúsculos pedacinhos de tecidos, todos diferentes. Várias bordas. Um painel feito inteiramente de tecidos importados.
A porta do quarto do casal se fechou e outros barulhos começaram a ser ouvidos. Mas essa... bem, essa é uma outra história!