terça-feira, 23 de setembro de 2008

Rio, quinze graus?!

Faço aqui um apelo: se alguém conhecer o telefone daquela garota carioca, suingue sangue bom que atende pelo nome de Fernanda Abreu, por favor, me passe. Quero ligar e deixar uns recados mal-criados na secretária eletrônica! Não é ela quem canta aquela coisa de Rio, quarenta graus? De qual Rio ela estava falando? Rio de Janeiro? Mentira!!!

Vocês devem ter notado que esse blog ficou meio abandonado semana passada. O que aconteceu é que eu fui ao Rio de Janeiro por conta de compromissos profissionais. Cheia de diminutivos na cabeça, com essa musiquinha nos ouvidos, coloquei só regatinhas e camisetinhas na minha mala. Por via das dúvidas, levei uma jaquetinha. Pois foi essa jaquetinha que me impediu de congelar naquela cidade! Exatamente: passei quatro dias na cidade maravilhosa, morrendo de frio!

No dia em que cheguei, chuva. E frio! Pra ninguém dizer que estou mentindo, aí vai uma foto de um termômetro de rua:


QUINZE GRAUS!

Na verdade, acho que a culpa nem é da Fernanda Abreu. É bastante possível que chegue a fazer quarenta graus por lá. O negócio é essa questãozinha particular entre nós. Quem? São Pedro e esta que vos escreve. Pretensão da minha parte, talvez. Mas que tem alguém na galera do Altíssimo de marcação cerrada com a minha pessoa, isso tem!

Tudo bem, tudo bem! Já sei quem é o mais forte, quem manda no tempo, já aprendi, já aprendi! Será que dá pra mandar um solzinho logo de cara na próxima vez que eu for pra um lugar qualquer? Pensando bem, caso essa coisa de chuva na minha vida continue, posso até oferecer meus serviços de nuvem negra para os lugares que estiverem vivendo períodos de seca, não é? Em vez de me leva que eu vou, sonho meu, atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu, chegarei cantando me leva que eu vou, toró meu, atrás da Juliana veio a nuvem que choveu.

A verdade é que São Pedro é um brincalhão. Faz chover nos lugares para os quais vou, mas depois dá uma risadinha, acaba se comovendo com meus apelos e manda sol. Dessa vez, foram dois dias nublados e dois com sol. Mas frios! Ouvi dizer que foram os dias mais frios do Rio nos últimos tempos. Ninguém merece!

Aproveitei a generosa hospitalidade de minha amiga Sheyla e, entre uma obrigação de trabalho e outra, fui conhecer um pouco dessa cidade improvável, cuja única palavra que pode ser usada como resumo é contraste. O velho e o novo. O pobre e o rico. O belo e o feio. A harmonia e a dissonância. A classe e a absoluta falta dela. Está tudo lá, lado a lado. É impressionante.

Não cheguei a me transformar numa muchacha de Copacabana, como cantou Chico Buarque, mas molhei meus pezinhos nas águas (geladas, diga-se de passagem) da princesinha do mar. Nem de longe passei perto de ser confundida com alguma garota de Ipanema porque meu corpo não tem nada de dourado (com toda essa chuva, como poderia?) e meu balançado... Bem, tem muita coisa que balança por aqui, mas duvido que daria qualquer poema. Também não tinha violão, por isso nem procurei qualquer cantinho, mas imaginei mil canções pra fazer feliz. Claro que fui ao Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara e, lá do alto, derramei meus olhos por aquelas paisagens todas. Vi o Rio de sol, de céu, de mar. Dá pra entender perfeitamente porque D. João VI relutou tanto em ir embora do Brasil.



Mesmo com chuva e frio, mesmo com as desconcertantes favelas encarapitadas nos morros, mesmo com o contraste brutal que escancara a diferença absurda entre pobres e ricos, realmente, não há como negar as canções, o Rio de Janeiro continua lindo!

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Muito "aquém" da imaginação

Eu já disse! Vocês também já disseram... Na verdade, aposto que qualquer pessoa de mais de dezesseis anos de idade, em qualquer lugar do mundo, pelo menos uma vez na vida já disse. Sendo bem sincera, a gente não diz isso, a gente pensa, porque dizer seria assumir o mico e disso pouca gente tem coragem. Confessem! Vocês também já viveram aquele segundo mortal em que a seguinte frase se forma na cabeça: Mas o que é que eu tô fazendo aqui?

Instantaneamente centenas de miquinhos começam a guinchar ao redor, mas geralmente já é tarde, Inês é morta, não adianta chorar sobre o leite derramado, o jeito é enfiar a viola no saco e, como aconselhou nossa sapientíssima ministra, relaxar e gozar. Não tem nada mais perfeito num momento desses do que um monte de clichês e frases feitas para aliviar nossa consciência. Explicar o que, muitas vezes, não tem explicação.

Eu me lembro perfeitamente da primeira, assim como da última vez em que pensei isso. Além de vários outros episódios semelhantes entre esses dois instantes, imaginem se isso teria me acontecido só uma vez na vida. Foram vários os momentos, confessáveis e inconfessáveis, nos quais me arrependi amargamente de ter tomado a atitude que me levou àquela situação, no mínimo, circense.

A primeira vez eu tinha dezessete anos, era julho e decidi ir sozinha para a praia. Sozinha, nesse caso, não é força de expressão. Peguei um ônibus e desembarquei no meio de uma tarde de terça-feira, dia nublado, garoa, frio e, depois de andar duzentos metros pelas ruas sem calçamento de Shangri-lá, desviando de poças d’água e sapos, carregando uma tralha horrivelmente pesada, parei subitamente e, num segundo, a frase veio: Mas o que é que eu tô fazendo aqui?

A última foi há dois anos. Eu, uma senhora casada, mãe de dois filhos, professora universitária com mestrado e tudo o mais, me vi sentada numa cadeirinha, com um cinto de segurança de aço prendendo meus ombros e minha barriga, enquanto o tal carrinho subia por um trilho. De ré! Gente, montanha-russa é coisa pra adolescente! Que idéia ridícula tinha sido aquela? E os engenheiros de montanha russa são todos sádicos. Quando o carrinho chega lá em cima e você vê o mundo com seus olhos paralelos ao chão, mas dezenas de metros acima dele, a geringonça faz um singelo TLEC!, o ponteiro dos segundos dá um pulinho pra frente no relógio e o pensamento vem: Mas o que é que eu AHHHHHHHHHHHHHHHHHH!

Foi! Você despenca, o mundo vira de cabeça pra baixo, a cabeça chacoalha, o cérebro desconjunta, os olhos reviram, os cabelos embaraçam, as pernas bambeiam e a bexiga, se bobear, solta o que estiver lá dentro. E ainda têm coragem de chamar isso de parque de diversões?! Parque de orações seria mais adequado. Só eu rezei cinco ave-marias nos eternos quarenta e cinco segundos que durou aquela agonia!

Saibam vocês que a grandecíssima responsável por todos os micos do mundo é a nossa imaginação. Sim, estou convencida disso! Imaginamos coisas e situações, mas esquecemos que o mundo perfeito só existe dentro da nossa cabeça. A vida real não tem nada a ver com os delírios das nossas ondas cerebrais sem noção!

Aos dezessete anos eu me vi fazendo maravilhosos passeios à beira-mar. Só esqueci que em julho chove, faz frio, não existe vivalma na praia, além disso a casa fechada cheira a mofo, não tem ninguém que cozinhe e, o pior, anoitece! Noites escuras em balneários desertos, com grilinhos fazendo cri-cri do lado de fora, estão muito mais para Bruxas de Blair do que para qualquer filme da Meg Ryan.

Não. Para a montanha russa não tem explicação que justifique a não ser o desespero. A gente vê a idade avançando e quer ter de novo dezesste anos, esquecendo completamente que mesmo aos dezessete anos já pagava micos.

Há dezenas, centenas, quiçá milhares, senão milhões, de exemplos de situações do tipo o-que-eu-tô-fazendo-aqui. Há alguns anos minha irmã, Renata, decidiu fazer parte de uma campanha de Natal que distribuiria brinquedos a crianças carentes. Na imaginação dela o filme estava pronto: o grupo chegaria ao local combinado, todos vestidos de Papai Noel, as crianças sairiam das casas com sorrisos nos lábios e se aproximariam do grupo, que entregaria os presentes com os olhos marejados de lágrimas. Tais presentes seriam desembalados e aqueles bracinhos cheios de gratidão enlaçariam os pescoços dos abnegados e incógnitos papais noéis que ao final voltariam às suas casas com os corações transbordantes de amor e espírito natalino. Lindo, não? Na imaginação!

A realidade foi que eles chegaram lá e já tinha uma multidão de crianças que, nem bem o saco do Papai Noel foi aberto, avançou nos pacotes. A Renata tentava entregar um embrulho, olhos nos olhos, dizendo Feliz Natal!, mas não conseguia porque vinham mãos de todos os lados e ela só fazia gritar: Calma aí!, Péra lá!, Tira essa mão daí, moleque! Os que pegaram os presentes abriam os pacotes e reclamavam! Voltavam para xingar as pessoas e dizer que se era pra trazer aquela porcaria, melhor nem aparecer, banco de filhos da... Exatamente! Ela também quis saber o que estava fazendo lá naquele momento.

E assim as histórias se sucedem. Tem o cara que vai assistir ao parto do filho, mas na primeira gota de sangue que aparece percebe que o estômago realmente existe e... Assim como a mãe que passa nove meses corajosamente aguardando o parto normal, mas depois de seis horas de contrações lembra de uma seringa de anestesia e... Tem o aventureiro de fim de semana que paga um curso para saltar de pára-quedas ou pular de bungee-jump, mas na hora em que a porta do avião abre ou que ele sobe na ponte, olha para baixo e... Tem o pai que contrata decoração, balões e animadores para entreter os convidados na festa de aniversário da filha, mas na hora em que o animador veste esse pobre pai de palhaço, com peruca de cachinhos pink, nariz de bolota e calça com cintura de bambolê se olha de relance no reflexo do vidro do salão de festas e... E o que dizer do cara quase quarentão que aceita o convite de um amigo para ir ao aniversário de uma colega mas quando descobre que a faixa etária dos convidados não passa muito dos 18 anos olha pra porta e... Sem esquecer da mulher que vai sozinha ao aniversário da filha de um amigo sem conhecer absolutamente ninguém da família ou dos outros amigos dele e, depois de duas horas ouvindo uma conversa insuportavelmente chata de uma amiga da esposa do pai da madrinha da aniversariante, olha discretamente para o teto e...

Todos esses personagens anônimos do mundo real gritariam em uníssono se pudessem: Mas o que é que eu tô fazendo aqui?!!!

Tudo culpa dela. Da imaginação. Imaginação fértil, eu diria. E todo mundo sabe que o melhor adubo do mundo é a... Isso aí que vocês imaginaram. Só que na vida real ela é ainda mais fedida!

O pior é que a gente não aprende. Continua a imaginar situações perfeitas, nos mundos perfeitos, que não existem. E, fatalmente, uma hora ou outra vai se ver no meio de centenas de miquinhos que guincham ao redor...

Pensando bem, disse que isso é o pior, mas a grande verdade é que são exatamente esses momentos símios que animam as conversas, não é mesmo? Tem coisa mais chata do que uma pessoa que não paga mico? Um ser humano para o qual tudo dá certo? Eu só conheço uma única pessoa assim no universo: eu mesma. Na minha imaginação, é claro! A versão mundo real paga um mico atrás do outro, depois vem contar aqui nesse blog.

Que venham os macaquinhos, então! Mas uma coisa eu prometo para vocês: montanha-russa, nunca mais! Não mesmo! Imaginem!


Versão para impressão.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Êta ela!

Na minha cabeça existem várias imagens para representar o paraíso. Esta é uma delas:


Uma caixa cheia de coloridas linhas de bordar é, para mim, uma coisa que existe com certeza no paraíso. E, exatamente as linhas dessa foto, são para lá de especiais. Essa é a caixa de linhas de bordar à máquina da minha avó Jandyra.

Há poucos meses estive com essa caixa nas mãos e fiz várias fotos para poder ficar olhando pra elas quando estivesse me sentindo no inferno ou no purgatório.

Desde muito pequena eu via essas linhas, brincava com elas, ficava encantada principalmente com as matizadas, essas que têm duas ou mais cores e fazem esses retroses listadinhos. Ficava horas ao lado da máquina de costura, observando o sobe e desce dos pés dela apoiados no pedal, que fazia girar a roda, que movia a correia de couro presa à máquina, que fazia a agulha subir e descer enquanto ela movimentava o bastidor para frente e para trás criando, aos poucos, os trabalhos maravilhosos que temos espalhados pela família.

Se hoje eu simplesmente não consigo viver sem estar próxima de linhas, agulhas e tesoura como vocês podem ver aqui, certamente é porque meu DNA tem o gen que obriga as mãos a trabalharem constantemente para criar peças, tramas, objetos... Não nasci aranha por puro acaso. Ou talvez tenha sido aranha em outras vidas, quem sabe? A verdade é já mudei de profissão várias vezes, já fiz de tudo um pouco. A única coisa que permanece inalterada para mim, desde os 7 ou 8 anos de idade, é essa ligação com tecidos e linhas. Minhas duas avós, Rosa e Jandyra, passaram elas também suas vidas enroladas aos fios, tecendo teias de bordados e rendas. Além de neta, no caso da minha avó Jandyra, ainda sou afilhada. Não tinha mesmo como escapar!

Jandyra, como vocês podem ver, é a imagem da avó típica: óculos, cabelos branquinhos, quitutes na cozinha e aquela ligação direta com o povo lá de cima. Terço constantemente na mão, é a ela que sempre recorremos nos momentos de necessidade: Vovó, tenho uma prova super difícil amanhã. Faz uma oração aí, por favor! Tráfico de influência, eu sei. Mas é que a reza dela sempre foi poderosa. Entrevista de emprego, cirurgia, dor de cotovelo, parto... Nada deixou de sair da melhor forma quando ela intercedeu por nós.

Só que o molde de vovozinha das histórias infantis termina por aí! Muito além da Jandyra que a gente vê na foto, tem a alegria, força e vitalidade que explodem onde ela estiver!

Não tem como ignorar sua sonora gargalhada, sem medo de mostrar que está feliz! Ela jamais deixou de expressar por inteiro as emoções, seja de alegria, seja de tristeza, seja de raiva ou de irritação. Nunca me esqueço de uma vez, eu devia ter uns 12 ou 13 anos, quando ela ficou na nossa casa tomando conta dos netos durante uma viagem dos meus pais. Nem sei o que é que eu e meus irmãos estávamos aprontando, só me lembro dela empurrando para longe uma mesinha de centro com o pé e gritando: MERDA!

Isso aí! A vovozinha de cabelos branquinhos sabia muito bem se fazer ouvir quando precisava! Só que a grande verdade é que são raríssimos os momentos como esses que eu tenho guardados na memória. Quando penso nessa minha avó, o que me vem à cabeça são imagens de risos, dança, festa e alegria. E não dá pra dizer que ela nunca tenha tido motivos para reclamar. Teve sim, e muitos!

Aos 11 anos, mais velha de cinco irmãos, perdeu a mãe que tinha apenas 28 anos. O pai dela, meu bisavô, era um homem ligadíssimo à beleza, trazia a si mesmo e aos filhos sempre bem arrumados de acordo com a vanguarda do mundo fashion, que devia chegar com décadas de atraso à pequena cidade do interior de Minas Gerais. Não importa! Minha avó Jandyra devia ser a própria imagem da melindrosa dos anos 20, com sainhas curtas e chapéus enterrados na cabeça.

Com a morte da mãe ela foi morar com tias que, escandalizadas com aquelas modernindades, costuraram tecidos quaisquer aos vestidos que ela teve de usar mesmo assim. O pai se casou de novo anos mais tarde e a madrasta tinha quase a idade dela. O relacionamento foi difícil, mas as duas se reconciliaram anos depois. Ela também se casou, teve filhos, e diante das dificuldades da vida no interior de Minas, viajou com o marido e a prole para começarem nova etapa no Paraná. Dito assim parece simples. Mas não consigo deixar de ficar impressionada e curiosa em imaginar como aconteceu essa viagem de mudança com nove filhos pela mão e a décima na barriga, de trem, por mais de mil e duzentos kilômetros de distância! A filha mais nova (minha mãe), tinha pouco mais de dois anos! Ela tinha toda a razão de repetir muitas vezes, deixando completamente a modéstia de lado: Êta eu!

A vida recomeçou no norte do Paraná e por ali seguiu. Com os dez filhos. Além desses, alguns abortos. Mas raramente ela comentou os filhos que não vingaram. Ao longo dos anos foi cada vez mais normal as pessoas se espantarem com a sua força e vitalidade. A resposta foi sempre a mesma: 10 filhos, 34 netos, 39 bisnetos e 3 tataranetos! Êta eu!

Não é que minha avó Jandyra não tivesse consciência das dificuldades pelas quais passou. Tinha. Mas ela, sem ignorar o lado feio da vida, sempre fez questão de focalizar o olhar no lado bonito dela. E essa concentração na visão do belo fez com que ela se sentisse sempre cheia de razões para ser feliz. O ruim existia, claro. Mas era solenemente ignorado.

Há mais de 20 anos um problema na coluna a obrigou a usar constantemente um colete ortopédico. Posso imaginar o quanto deve ser desconfortável um colete ortopédico. Mas o que ela fez foi aproveitar o colete para andar toda empertigada e ainda mais elegante. O colete impediu que ela curvasse os ombros e adotasse a atitude derrotada que eu vejo em tantas pessoas, às vezes bem mais novas do que ela.

Agora que parei para pensar no tempo do colete, vi que os números associados a essa minha avó são sempre grandes. Desde a numerosa descendência até os tempos de experiência...

No começo falei dos seus bordados à máquina, coisa que ela começou a aprender ali pelos 10 anos de idade. São mais de 80 anos de experiência já que ela completou 96 anos no ano passado. O colete ortopédico não deixava mais que ela ficasse sentada muitas horas seguidas. Em vez de reclamar, decidiu aprender crochê. Aprender uma coisa nova aos 70 anos de idade! E eu vejo tanta gente de 40 por aí dizendo que já cansou...

Recentemente descobri que sou um plâncton. Hoje penso que minha avó Jandyra sempre foi um plâncton. Só não se deu conta disso. A vida a foi guiando por caminhos diversos, nem sempre fáceis, e ela se deixou levar. Em cada novo destino encontrou seu bem-estar e continuou a descobrir razões para gargalhar e ser feliz. E, se por acaso alguma contrariedade pegava fundo, se a irritação viesse, sua reação era cantar. Não dizem por aí que quem canta seus males espanta? Quando começava a cantar a gente já sabia que ela estava espantando os seus males.

Eu me sinto um pouco pretensiosa em encontrar semelhanças entre nós duas, já que minha admiração por ela é imensa. Mas não consigo deixar de notar essas proximidades. Desde a mais bobinha delas, a coincidência nas iniciais e quantidade de letras dos nomes, Jandyra e Juliana, até o fato de sermos ambas librianas, apaixonadas pelo bordado e pela máquina de costura, enlouquecidas por flores e por um lindo pôr-do-sol.

Deve ser essa atração do libriano por tudo o que é bonito e harmônico. Nem sei quantas vezes ouvi minha avó comentar a respeito da sua própria roupa que Essa costurinha aqui da gola combina direitinho com a cor da minha meia, você viu? Também sou obcecada pela combinação de cores até mesmo nas peças que não se podem ver, se é que vocês me entendem, que sempre que possível vão combinar com a roupa que eu estiver usando. É mania, eu sei! Mas agora vocês sabem que é herança genética e que esse tipo de herança é incontrolável.

Quanto às flores, nunca consegui ter seu dedo verde... Adoro flores, não tem como passar por elas sem me sentir atraída, sem, no mínimo, olhar. Mas não consigo ter um vasinho sequer na minha casa. Já minha avó cercou suas casas de flores. Seus jardins sempre foram os mais floridos da rua e, até mesmo na hora de casar, ela conseguiu encontrar um marido cujo nome de batismo era a versão masculina do nome de uma flor: Accácio.

Claro que eles devem ter tido suas dificuldades como qualquer casal, é evidente que essa união foi como todas as outras, feita de concessões e ajustes de ambas as partes. Mas a imagem idealizada que eu tenho dos dois é a de uma união de corpo e alma, daquelas de filme da sessão da tarde, que fazem a gente dar um longo suspiro no final e dizer isso é coisa que só acontece no cinema...

Quando ele se foi, ela instalou rodinhas nos pés e passou a viajar constantemente, pulando da casa de um filho para a casa de outro. Provavelmente foi o jeito plâncton que ela encontrou de driblar a tristeza e de enganar a memória. Estando sempre fora de casa, ela podia criar a ilusão de que um dia voltaria para a sua própria casa e para o seu companheiro. Sábia Jandyra... Foram mais de 50 anos de vida em comum com aquele que o inconfundível sotaque mineirês transformou em Cassim.

Aliás, o tal do mineirês corre forte nas minhas veias. De tanto ouvir da minha avó frases como Tô pelejano nesse fugão pra fazê uma abobrinha afogadinha, tenho a sensação de que vivi nas Minas Gerais. É incrível isso, mas mesmo sendo paranaense, tenho saudade de Minas. Saudade do que não vivi, dos lugares onde não morei, das paisagens que não vi. Talvez seja por isso que eu faça tantas fotos. Procuro captar e fixar as imagens que tenho dentro de mim como uma forma de materializar minhas emoções. Uma tentativa de me traduzir em imagem. A chegada da máquina fotográfica digital permitiu que eu extravasasse meu interior sem medo e sem culpa, e nos últimos anos acumulei milhões de bytes em fotos.

Meus objetos mais freqüentes de cliques são, não por acaso, as flores, uma bela paisagem, um lindo pôr-do-sol, e o que eu chamo de texturas, cliques em close de cascas de árvore, pedras, areia, água... Uma vontade de captar o detalhe, a cor em estado puro, quem sabe, para com elas tecer um bordado de vida.

Como disse, as flores são minhas musas assim como um belo pôr-do-sol e, na grande maioria das vezes, era na minha avó que eu pensava quando via o resultado das fotos. Sei que não sou original nos meus temas fotográficos, mas não tenho qualquer pretensão profissional nessa área. Quero apenas refletir nelas o que carrego dentro de mim. E essa paixão pelo pôr-do-sol e suas cores mutantes é igualmente herdada da minha avó.

Um dia assistíamos as duas a um poente maravilhoso que era possível observar da janela do apartamento em que eu morava nos meus já longínquos 17 anos. Hoje uma cortina de prédios se interpõe entre meus olhos e o sol mas, naquela época, do oitavo andar tínhamos garantidos espetáculos quase diários. Naquele dia eu e minha avó olhávamos mudas para o sol que se escondia no horizonte, invejando secretamente a capacidade da natureza de brincar com as cores daquela maneira desconcertante. Num determinado momento, sem desviar os olhos do céu em brasa, ela me disse: Depois que eu morrer, quando você assistir a um pôr-do-sol desses, lembre de mim.

Eu olhei para ela querendo esboçar um protesto porque para mim ela era imortal. Mas não disse nada. Segui meus dias e meses assistindo a tantos outros ocasos e, nos últimos anos, fotografando todos os que consegui. Na última semana tivemos dias lindos em Curitiba, mas infelizmente a correria em que vivo não me deu a chance de ver nenhum pôr-do-sol. O que eu desconfio, é que eles devem estar muito mais bonitos, já que minha avó Jandyra, há sete dias tomou um grande embalo nas rodinhas sob seus pés e fez mais uma viagem, a última aqui dessa nossa Terra. O céu certamente está muito mais bonito e decorado. Provavelmente, logo estará também cheio de toalhinhas bordadas, é certo!

Agora minha avó Jandyra já é também parte do meu arsenal de imagens. Uma imagem composta de tantas outras, de flores, de paisagens, de bordados, de cores e de poentes. A partir de agora, minha avó existirá dessa forma dentro de mim:

Mosaico criado com o programa AndreaMosaic 3.23 Beta (referência no fim do post)

Usei um programa de computador que transformou parte das minhas fotos particulares nesse mosaico. Quanto mais de longe a gente olha a imagem, melhor enxerga a foto original...

Quando ela fez 90 anos, muita gente da família escreveu uma pequena história sobre ela e essas histórias foram reunidas em um livro. Eu quis muito escrever alguma coisa também naquela época, mas não consegui. Por quê? Não sei... Acho que ainda me faltava muita compreensão da vida. Da minha própria e também da vida dela. Eu não estava pronta. Senti muito não ter contribuído com aquele livro que ela tão orgulhosamente mostrou a tanta gente.

Hoje, uma semana depois de ela ter ido embora, com sete anos de atraso, faço a minha homenagem e coloco em palavras a imensa admiração que tenho por ela e pela vida que ela viveu.

Quero, como ela, ser capaz de diminuir a importância dos maus momentos, para enaltecer os bons. Quero ter vontade de aprender coisas novas aos 70, 80, 90 anos. Quero dançar no baile de formatura dos meus netos até às seis horas da manhã como ela dançou no meu quando tinha 82 anos. Quero me olhar no espelho aos 94 anos e dizer Não sei, mas acho que estou começando a ficar um pouco enrugada... Quero fazer meus bordados e costuras enquanto meus olhos e minhas mãos suportarem.

Não... Contrariamente ao que eu pensava aos 17 anos, minha avó não era imortal. Não aqui na Terra. E, pensando bem, o doce Accacinho já devia estar morrendo de saudades da sua Jandyra. No meu mundo interno, povoado de imagens, eu tinha de criar uma também para esse momento. Mas para isso não tinha máquina fotográfica, nem programa de computador que desse jeito. Por isso, inspirada num desenho que vi num jornal quando morreu o cantor Gonzaguinha, criei agora minha própria cena, como eu acredito que ela aconteceu. É uma pena que eu não lembre o nome do artista que fez o desenho que inspirou o meu (nem mesmo a santa Internet conseguiu me ajudar dessa vez). Mas tudo bem. Minha imagem está criada, desenhada a mão mesmo, e deixo aqui como parte dessa homenagem.

Lá de onde eles estiverem, espero que consigam também ver o que desejei para os dois...

Êta eles!

Versão para impressão

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A Internet é realmente uma coisa maravilhosa! O mosaico criado com a foto da minha avó só foi possível porque encontrei um excelente programa gratuito na Internet chamado Andrea Mosaic. Aqui vão os dados para quem quiser também utilizá-lo, ou conhecer os interessantes trabalhos que podem ser feitos:

AndreaMosaic Beta
Copyright (c) 1997-2008 Andrea Denzler
Version 3.23 Beta Tile Aspect Ratio 12:9
http://AndreaPlanet.com/andreamosaic

Para quem quiser baixar o mosaico e ver todos os pedacinhos individualmente, clique aqui.

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Caso esteja aparecendo uma mensagem de erro no momento de baixar os arquivos (fotos e texto), deixe para voltar ao site em outro momento. O Yahoo (local onde coloco os arquivos para download) tem um limite diário de acessos. Uma opção é clicar o link com o botão direito do mouse e selecionar a opção Salvar destino como.