segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Prisão perpétua


Professor só tem dois destinos possíveis: enquanto está aqui na Terra é a cadeia. Depois que bater com as dez é o inferno. Simples assim. Entre os adjetivos que podemos e devemos usar para qualificar um professor estão: ladrão, contrabandista, falsário, gatuno, larápio, safado. Em resumo, professor é tudo bandido. E ponto final.

Eu arriscaria estender essa minha definição a todo e qualquer professor, mas, como eu mesma sou professora, portanto, carrego comigo todos os adjetivos citados acima e não quero aumentar minhas penas com acusações de injúria, calúnia, difamação, danos morais e blá, blá, blá, vou restringir meus comentários aos professores de língua estrangeira.

(Mas lá no fundo o que vou dizer serve pra TODOS os mestres que se esgueiram criminosamente pelo mundo, tenho certeza!)

Retomando, professor de língua estrangeira é tudo bandido. A gente faz fotocópia não autorizada de livro, jornal, revista; baixamos clipes de música da internet; copiamos discos e filmes de todo gênero; usamos imagens de Deus e o mundo sem pedir licença; mandamos vir ou trazemos, nós mesmos, DVDs de outros países dos quais vamos quebrar o mecanismo de regiões que impedem que os filmes sejam exibidos aqui, ou desbloquearemos o aparelho de DVD!

Não há um só dia, uma só aula, em que eu não infrinja alguma lei de direito autoral e, ouso arriscar, imagino que o mesmo acontece com meus colegas de profissão, seja em que sala dessa Torre de Babel repleta de meliantes eles estiverem.

O mais engraçado é que não lucramos com o fruto de nossas más ações, ao contrário, pagamos por ele, literalmente, isto é, usamos o nosso vil metal! Pagamos as cópias, compramos os DVDs virgens ou não, gastamos nosso tempo, dinheiro, além de horas e horas da banda larga da nossa internet (sem falar nas horas de sono que prodigalizamos nessas tarefas).

Assim foi, assim é e assim será cada vez mais.

Se a polícia decidisse botar escuta num centro de línguas qualquer poderia ouvir coisas como:

- Aí brother, tô com uma lista novinha de filmes pra trabalhar os tempos do passado. Vai um aí?

- Opa, mec, demorô! Passa o bagulho pra cá! Madona mia! Grazie!

- Hombre, como tu é um profe manero, vou liberá isso aqui pra ti também. Tiens!

- Ach ja. Mas é aquela música que a gente usa pra trabalhar negação! Do cholery! Eu tava atrás disso há um tempão. Como é que tu conseguiu?

- Easy! Fiz uma conta com endereço no estrangeiro e comprei um vale presente pra mim mesmo, daí consegui usar o vale presente pra baixar o MP3 da música e também uns e-books de autores contemporâneos.

- Trop cool, aê!

- Pra semana que vem vou dar um jeito de baixar uns documentários daquele canal de TV com restrição de visualização em outro país e te aviso.

- Ça marche, cabron!

E os policiais nem vão precisar de intérprete. Mas, se precisarem, vão ter vários à disposição no xilindró porque o resultado dessa blitz vai ser superpopulação de professor em cana.

O que eu acho mesmo é que devia aparecer alguém com coragem suficiente pra fazer uma espécie de “quebra de patente” do mesmo jeito que fizeram com os medicamentos uma vez: simplesmente acabar com essa história de direito autoral pra uso educacional de bens culturais. Livro, foto, revista, filme, comercial, música, clipe, DVD, etc., etc., etc. Se é pra usar em sala de aula, pra educação, então não tem essa de direito autoral. Usa-se e pronto. No todo, em parte, cortado, editado, de qualquer jeito.

Tem trabalhos maravilhosos que poderiam ser feitos em sala de aula e que não são porque há restrição de uso, ou ficaria tão caro pagar esses direitos que a atividade é inviável. Quer dizer, muitos não são feitos, mas outros acontecem simplesmente porque os professores ignoram solenemente a lei, os perigos, as sanções: no submundo dos educadores, principalmente aqueles em fase terminal de dependência pedagógica profunda, não há lei, ameaça de castigo terreno ou celeste que os impeça de fazer o que for necessário, sem maiores escrúpulos. A dependência é severa mesmo e a gente faz qualquer coisa pra ver surgir no olho do aluno aquele brilho, seguido de um Ahhhhhh!, indicativo de que ele entendeu e aprendeu alguma coisa!

E então? Quem se habilita a comandar essa cruzada? Ressuscitemos a Princesa Isabel e vamos abolir as leis de direito autoral sobre o uso educacional de seja lá o que for. Acordemos o Newton pra ele calcular a força gravitacional do peso a diminuir sobre as consciências dos professores. Eles continuarão carregando o peso dos livros e dos diversos materiais que levam para sala de aula. Se der pra diminuir o peso da condenação terrena ou divina já seria bom demais.

O paraíso mesmo seria fazer vir do mundo dos vivos ou mortos um filósofo e um químico que, trabalhando em interdisciplinaridade, transformassem todo o peso da culpa em ouro porque, em termos de salário, nem mesmo Newton mostraria que há planeta no universo em que a lei da gravidade faça com que o peso de quase nada fique muito maior que zero. Seja na matemática de Einstein ou dos salários, multiplicação por zero, continua dando zero, não tem jeito!

Isso quer dizer que nós, pobres professores, e pobre aqui deve ser entendido no sentido literal que conheceram Camões ou Machado de Assis, não teremos nem o suficiente para pagar a fiança. E, se tivéssemos, desconfio que gastaríamos tudo em contrabando de lápis, caderno e giz para dentro das prisões a fim de dar aula para os outros detentos.

Uma vez que a gente entra pro mundo do crime, não consegue (nem quer) sair mais!


1º colocado da categoria Funcionário no concurso Revele seus outros talentos, edição 2014, PUCPR