sexta-feira, 21 de março de 2008

Filho de peixe...

Já contei, não é segredo pra ninguém, que eu sofro do mal da preguiça. A lei do menor esforço é o artigo número um da minha constituição particular. Em seguida vem “deixe para depois o que deveria ser feito agora, sempre que for possível”, “devagar a gente vai do mesmo jeito, ainda que não chegue a lugar algum” e por aí vai. Se pudesse, passava horas e horas deitada numa rede sem culpa!

Por isso, a simples idéia de que eu teria de fazer lição de casa com meus filhos quando eles entrassem em idade escolar me apavorou. Felizmente eles só lerão esse blog, se um dia chegaram a ler, daqui a muito tempo e aí das duas uma: ou eu terei conseguido fazer a poupança necessária para pagar o reforço escolar, ou eles já vão estar quase fora da escola.

Quero avisar aos terroristas de plantão que se alguém for dar com a língua nos dentes pra um dos dois eu nego! Palavra de mãe é lei. E mãe é sagrada!

Realmente, a tal da lição me pegou de surpresa. Quando o Felipe foi para a primeira série ainda morávamos na Terra do Astérix. As aulas aconteciam às segundas, terças, quintas e sextas das nove da manhã às cinco da tarde e, aos sábados, das nove ao meio dia. Início de ano, reunião com a professora e a bomba caiu sobre a minha cabeça: agora ele vai ter lição de casa! Naquele momento, na verdade, eu não percebi a bomba. Eu achei que, como qualquer criança normal, o Felipe simplesmente chegaria em casa, responsavelmente, verificaria a lição a fazer e faria. Sem que eu nem tivesse de tomar conhecimento do fato. Eu não contava com a genética. Talvez tenha deixado de fazer essas lições na escola, quem sabe?

Pois é! Tal como a cor dos olhos e o dedão do pé meio tortinho, a preguiça também é hereditária. O Felipe anda pela casa e eu vejo a minha própria preguiça por ali, reencarnada.

Quero deixar bem claro o que já tive a oportunidade de dizer em outra ocasião: engana-se quem pensa que a preguiça é algo que faz parar o mundo, muito pelo contrário! É a preguiça que move o mundo! Se não fossem os preguiçosos, aqueles que não queriam mais saber de arrastar pedras por aí, a humanidade não teria inventado a roda. Pra que achar uma forma mais fácil de fazer uma coisa difícil se a gente não tem preguiça de fazer essa coisa? Sem a preguiça estaríamos ainda fazendo uga-uga dentro das cavernas, tenho certeza!

Depois dessa defesa antropo-sócio-técnico-científica de nós, os preguiçosos, volto a contar que entre mim e o Felipe as lições se tornaram rede de batalha: eu querendo me encostar de um lado, ele do outro e pronto: a confusão se estabeleceu.

O grande problema é que, no papel de mãe, jamais poderia autorizar nem incentivar a tal da preguiça. Além de botar disciplina no nosso barraco, ainda tinha de vencer minha própria preguiça de fazer isso. Oh, calvário!

Estávamos na metade superior da laranja Terra. Hemisfério Norte, verão em julho, inverno em dezembro, um lugar em que Papai Noel não morre cozido vestindo roupa de lã em pleno verão. Ano escolar sempre começa logo após o verão, portanto, início das aulas em setembro. Uma simples questão geográfica que me deu mais um ano de aparente sossego... Por conta desse descompasso entre o calendário escolar francês e brasileiro, quando o Felipe terminou a primeira série na França, não tinha completado 7 anos. Se estivéssemos no Brasil ele estaria ainda na metade da primeira série nesse momento. Aí eu pensei: não vamos ficar aqui pra sempre. Ele é tão novinho. Tem aula o dia todo... Absurdo a escola mandar lição pra casa! Onde está o Piaget que permite uma situação dessas? Não vou obrigar essa pobre criança a fazer lição, que tortura. Ufa! Passa já essa rede pra cá!!!

Claro que eu não admiti isso pra ele! Continuava lá da minha rede dizendo que fazer lição era importante, necessário, obrigatório, etc. e tal. Mas, de verdade mesmo, não insistia muito.

Aí ele começou a segunda série. Estávamos na França ainda, mas no Brasil ele estaria terminando a primeira série. E já tínhamos data para voltar. Tive de deixar minha redinha tão confortável. Sob protestos veementes, é claro! Enfim, fui obrigada a começar a controlar e exigir as tais das lições. As estratégias foram as clássicas: pedidos delicados, firmes, insistentes, enérgicos e histéricos, nessa ordem de gradação. Recompensas, ameaças, castigos. O fundo do poço. Para reescrever uma lista de seis palavras ele demorava uma hora e meia! E quando chegava ao fim estávamos exauridos e exangues da batalha.

Passei a prestar mais atenção ao tema “lição de casa” nas rodas de conversas de mães no portão da saída das aulas. Uma técnica aqui, uma dica ali, adaptações criativas da minha parte e eu elaborei um novo método de tortura, digo, um novo método de educação (mães não torturam, tudo o que elas fazem é pelo bem dos filhos, embora Freud diga o contrário).

O método consistia no seguinte: criei uma tabela com os dias da semana de um mês. Essa tabela ficava suspensa pelos ímãs na porta da geladeira. No final de cada dia eu fazia uma avaliação do trio banho-lição-comportamento. Foi tudo bem? Eu colava uma etiqueta azul naquele dia. Algum problema? Etiqueta vermelha. No final de cada semana a avaliação geral. Ele tinha direito a uma etiqueta vermelha por semana. Mais de uma etiqueta vermelha e era punição certa. Punição essa que variava, mas que obedecia à regra geral: perde aquilo que mais quiser no momento.

Tinha os requintes de crueldade, digo, de sofisticação. O prazo pra terminar a lição era marcado num relógio de cozinha. Ele tinha meia hora, tempo mais do que suficiente para a quantidade de tarefa a fazer. Tic, tac, tic, tac... Trrrrriiiiiimmmm. A lição tinha de estar pronta antes do trim. Acho que ele nunca se deu conta da quantidade de vezes que eu atrasei furtivamente aquele relógio. As meias horas às vezes duravam noventa minutos. Nem Einstein conseguiria explicar a relatividade daqueles tempos de lição. Sou mãe e não madrasta! Apesar de não parecer, confesso.

Voltamos ao Brasil e o esquema das etiquetas continuou. Devia ser uma verdadeira tortura chinesa aquilo porque um dia ele implorou:

- Eu me rendo, eu me rendo! Eu faço as lições sem reclamar, mas, por favor, pare com as etiquetas!

Eu concordei, vejam como sou magnânima. Nada a ver com minha preguiça de preparar a tal tabela, lembrar das etiquetas, imagine! Abandonamos, aliviados, as etiquetas coloridas.

Se ele passou a fazer as lições civilizadamente? Claro que não! Continuamos as brigas diárias e, nesse ponto, ele sofisticou a argumentação dizendo:

- A Ana Luíza não tem de fazer lição, então eu também não tenho!

- Ela é quatro anos mais nova do que você! Aos três anos você também não tinha de fazer lição. E eu não tinha de controlar lição, ai que saudades... – Esse finalzinho eu só pensei, é claro!

Enfim, entre lágrimas e ranger de dentes de ambas as partes, as tais das lições iam saindo meio alquebradas.

O grande problema é que somos, Felipe e eu, além de preguiçosos, também perfeccionistas. Essa genética é de matar. E essa combinação, de enlouquecer! Entre a vontade de não fazer nada e a chamada de atenção da professora no dia seguinte pelo trabalho não feito ou, pior, mal feito, o que escolher? Oh, céus!

Ele começou a perguntar:

- Até quantos anos eu vou ter que ir pra escola?

- Olha Fê, não quero te desanimar, mas eu, por exemplo, quase quarentona, ainda vou pra escola...

Nunca vi dois olhos tão desalentados na minha vida.

- ... mas tem gente que só estuda até os 18 anos!

Uma centelha de esperança brilhou para logo em seguida se apagar. Ele tinha feito a lição de matemática naquele dia: dos 8 aos 18 anos seriam dez anos. Uma eternidade!!!

Observava, indignado, a irmã naquela moleza de vida pré-escolar. Nada de lições para fazer.

Nessa época, eu já tinha abandonado completamente a tarefa de fiscalizar e orientar lições e passado a bola para o Vidal. Se a coisa continuasse comigo um de nós acabaria inexoravelmente num hospital. Psiquiátrico. O Vidal assumiu brilhantemente a tarefa que eu era incapaz de conduzir.

Até que um dia abri a mochila da Ana Luíza e exclamei:

- Olha, a Ana Luíza agora tem lição pra fazer.

Dentro da minha cabeça a seqüência de pensamentos já começou a se formar: ela é tão novinha. Primeira série ainda demora. Que absurda essa responsabilidade já tão cedo!

O Felipe estava por perto e vibrou:

- Ah ha! Agora ela vai ver o que é bom! - esfregava as mãos com um brilho insano no olhar.

Peguei aquela folha cheia de linhas tracejadas, as quais ela devia seguir com um giz de cera e, ombros encurvados diante do filme cuja reprise eu já antecipava, fui atrás dela.

O Felipe veio junto dando risadinhas maléficas. Queria estar presente no tão sonhado momento em que a irmã se juntaria a ele no campo de concentração das tarefas escolares.

Ela estava na sala, entretida com suas bonecas. Eu cheguei e, num fio de voz, disse:

- Zizá, deixa essas bonecas e venha aqui. Você tem lição pra fazer.

O Felipe acrescentou:

- Agora você vai ver só como é chato ter de fazer lição!

Ela olhou pra mim. Olhou pro Felipe. Olhou pra folha na minha mão. Arregalou os olhos. Levantou e gritou:

- OBAAAAAAAAAAAAA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Saiu correndo e sentou na cadeira diante da mesinha onde eu, perplexa, coloquei a tal folha. O Felipe não conseguia juntar o queixo do chão. Ficou catatônico. Arrasado.

Expliquei o que ela tinha de fazer, ela fez, terminou e falou:

- Quero mais!

E o Felipe ainda ali, parado, incrédulo.

Disse que era só aquilo e ela começou um choro convulsivo porque queria mais lição pra fazer. Pensei: “Essa não!” Sugeri que ela viesse dividir a rede comigo e com o Felipe que, a essas alturas, já estava deitado no meu colo, ganhando um cafuné. Tem certas decepções na vida que só cafuné de mãe curam. Mesmo que a mãe seja torturadora.

Depois desse dia e depois da infinita paciência do Vidal, o Felipe se resignou e se rendeu às lições.

O ano escolar acabou de recomeçar e hoje reina a paz no lar dos Martins. As lições são feitas sem lágrimas. A Ana Luíza ainda não tem lições diárias, mas eu providenciei umas revistinhas de atividades pra ela se acalmar. Ao que parece, ela não entrou na linha sucessória da minha preguiça.

Eu me limito a perguntar, do fundo da minha rede:

- Fê, tem lição hoje?

- Já fiz! Tem um espacinho pra mim aí nessa rede com você?

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2 comentários:

  1. Que preguiça, onde??? Como???
    Post até na sexta feira santa?????
    Pagação de promessa???
    Devo confessar que você me deixou completamente confusa.
    Como explicar um ser que, se não reclamava de pouca lição - apenas do conteúdo ser muito fácil - as acabava prontamente, e ao mesmo tempo é absolutamente preguiçoso.
    Deve ser um tipo especial a minha preguiça - revolve-se a tudo que me é imposto - mesmo o que me dá prazer.
    Pode um negócio desses???
    Se disserem que tenho que ficar na rede de tal a tal hora, tenho preguiça.
    Sempre fui do contra.
    Tenho preguiça até de fazer o que gosto, se me sentir obrigada a....
    Oh, ser!!!!
    Como me expressar sem ser repetitiva???
    Gostei muito. Para variar.
    A ver pela sua produção, você está ótima.
    Acho que sua preguiça sofreu alguma mutação.hihhihi...
    Adoro dar reload na tua página e encontrar novo post. Brinco de adivinhar quando te vejo on line.
    Nessa acertei.
    Feliz Páscoa
    Super beijo
    Marie

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  2. Ju,

    Conheço você da comunidade da Candy e estou adorando o seu blog. Ri bastante com este post...to passando por isso amiga. Meu filho tem 05 anos e eu ando fazendo igualzinho você...obrigando o menino a fazer a lição e por dentro achando aquilo um absurdo, porque ele é tão pequeno....

    Não deixe de escrever...

    Bjs

    Roberta

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