domingo, 3 de agosto de 2008

Quando uma palavra só não basta

As línguas têm palavras que são difíceis, às vezes impossíveis, de serem traduzidas. Por exemplo, todo mundo já ouviu falar que nós, descendentes de Camões, temos uma palavra que não existe em outros idiomas: saudade. Não é que as outras pessoas do mundo não sintam saudade. Elas sentem, é claro! Principalmente quando vêm para o Brasil, passeiam pelas praias do Nordeste e voltam pra terrinha deles... Duvido que um norueguês, no meio de uma tempestade de neve, não morra de saudades de uma praia de areias brancas e coqueirais. Nessa situação, além de alguns palavrões, ele vai ser obrigado a usar diversas palavras para explicar o que sente, palavras essas que provavelmente são empregadas também em outros contextos. Nossa vantagem sobre ele é, com uma só palavra, dizer tudo!

Isso não é privilégio nosso, pasmem! Ao aprender outras línguas acabamos descobrindo palavras que dizem o que nós, sucessores de Machado de Assis, precisamos de frases inteiras para explicar. Um exemplo é o verbo dépayser do francês. Se quiséssemos achar um equivalente teríamos de inventar algo como despaisar. Diríamos: Estou me sentindo despaisado; Nessas férias eu quero mais é me despaisar; Fiquei completamente despaisado naquela festa... Não dá.

Dépayser significa mudar de lugar, estar fora do ninho, fora de casa, mudar de ares. Pode ser bom ou ruim, depende do contexto. Quando saímos de férias é justamente o que buscamos: mudar de ares, conhecer o novo, viver o diferente...

É exatamente por esse motivo que alguém sai de Curitiba no mês de julho e enfrenta o tormento de fazer malas, horas de aeroporto, turbulência, lanchinho de avião e se manda pro Nordeste. Para dépayser. Deixar para trás os dias monocromáticos em tons de cinza, a garoa e o frio, para inundar os olhos com apenas três cores: o azul do céu, o verde do mar e o branco da areia. Não é por outra razão que uma foto como essa vai parar na ala surrealista do meu museu particular:



Curitiba? Não! João Pessoa! Bem no fundo vocês NÃO conseguem ver a Ponta do Seixas, o ponto mais a leste de todas as Américas. O que vocês também NÃO conseguem ver é onde termina o azul do céu e começa o verde do mar porque tudo está CINZA! E essa, exatamente essa, foi a minha visão quando acordei no quinto dia de viagem. Enfiei uma roupa preta em sinal de protesto e estava quase para sair quando recebi um SMS de uma amiga: E aí? Já tá bronzeada? Olhei novamente para os meus braços e me lembrei do dia anterior, quando tinha passado horas acompanhando uma divertida corrida de hemácias pelas minhas veias aparentes sob a pele translúcida depois de cinco anos sem ir a uma praia. Praia essa que eu olhava naquele instante, de dentro do carro, para me proteger da chuva torrencial que caía! Piadinha de mau gosto aquele SMS, naquele momento em que eu acabava de dar de cara com outra piadinha ainda mais sem graça, dessa vez de São Pedro.

Respondi o SMS da minha amiga: Bronzeada? Alguém pinchou uma maldição! Quase só tempo nublado. Mentira! De vez em quando chove também!

Mau humorada, reconheço, mas quem não estaria?

Só que turista é turista e, além disso, ninguém tinha disposição para fazer bolinho de chuva nem chocolate quente. Saímos mesmo assim. Fomos ver de perto a Ponta do Seixas, o ponto mais a leste das Américas, aquele que não era possível enxergar da janela do hotel. É o primeiro lugar do Brasil onde se vê o sol nascer isso, é óbvio, quando o céu não está desabando em estado líquido como naquele momento! Nesse lugar existe um farol e, atrás dele, foi recém-inaugurado um museu, centro cultural, obra inconfundível de um dos meus ídolos, Oscar Niemeyer:


Lugar amplo, as rampas laterais usadas para chegar aos andares do museu admirando a paisagem. O prédio totalmente de vidro pelo mesmo motivo. Um mirante no topo de onde é possível ver o mar. Mas nós não vimos nada disso porque ninguém conseguia sequer levantar a cabeça, muito menos abrir os olhos debaixo daquela chuva de vento! Pelo menos posso dizer que já fui testemunha de uma chuva horizontal, tão forte era a ventania. Meu investimento em protetor solar foi, literalmente, por água abaixo. Só não perdi tudo o que tinha investido no meu kit-de-verão-para-o-mês-de-julho porque a novíssima e belíssima canga de araras foi excelente para me secar do banho. De mar? Claro que não! De chuva! E a outra canga que sobrou seca foi extremamente útil. Como saída de banho? Nem pensar! Como echarpe, cachecol, xale, só não foi usada como casaco porque não tinha mangas!

Eu disse que dépayser podia ser usado no bom sentido de novos ares, mas também na situação em que a gente se sente meio peixe fora d’água. Era isso que eu estava procurando! Exatamente isso! Ser um peixe FORA d’água e não DEBAIXO dela como naquele momento!

Há quem pense que o ideal num dia como esses seria flanar num dos templos de consumo que existem em qualquer cidade grande: um shopping center. O problema é que esse foi o programa da véspera, dia em que passamos igualmente debaixo de um toró! Ninguém merece!

Assistindo ao noticiário na noite desse dia, vimos a comovente história de uma família paraibana que se mandou para o Rio Grande do Sul com o objetivo exclusivo de conhecer o frio. Como nós entendemos a sensação deles ao chegarem a Porto Alegre sob sol escaldante e temperatura de 28 graus! Viraram a Terra de cabeça para baixo e esqueceram de nos avisar? Para piorar nosso humor, as notícias que recebemos de Curitiba não foram muito diferentes: sol sem nuvens, temperaturas altas durante o dia e clima ameno à noite. E, para completar, tivemos de ouvir da repórter d TV a previsão para o dia seguinte: Amanhã o sol e o clima seco continuam em todo o país com exceção dessa pequena faixa no nordeste. Tive a impressão de ver um sorrisinho sarcástico na cara dela. Deve ter sido só impressão...

Na hora do desespero a gente sempre apela para o que tiver disponível. Decidi consultar um oráculo. Empunhei um notebook indignada confiando que Santo Google saberia nos informar aonde raios poderíamos ir para fugir da chuva. Dito e feito! Descobri que uma das atrações da Paraíba chama-se Lajedo do Pai Mateus no município de Cabaceiras. Essa região, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia e também de acordo com reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, reproduzida pelo site do governo do estado da Paraíba, tem um dos menores índices pluviométricos do país! Mais de dez meses de sol por ano! Era para lá mesmo que iríamos.

O mais interessante é que, justamente por ser um local onde quase não chove, o lugar é conhecido como... Não vou dizer! Vejam vocês mesmos:

Isso mesmo! Chegamos à Roliúde Nordestina! De acordo com a já referida reportagem da Folha, Cabaceiras é a “cidade favorita de diretores de cinema, por onde as nuvens carregadas de água passam e quase nunca param.” Por isso já foi locação de 22 filmes nacionais, entre eles, o Auto da Compadecida.

E a cidade vem se especializando. Tanto que em maio último foi inaugurado o letreiro que vocês viram na foto anterior e, ainda este ano, Cabaceiras ostentará orgulhosamente sua própria calçada da fama! Só que não serão eternizados os pés e mãos de nossos artistas nacionais, mas sim, dos bodes vencedores da tradicional festa Bode Rei que acontece todos os anos na cidade. Realmente, para quem estava querendo fugir da chuva não podia haver melhor locação para o nosso curta-metragem particular!

Chegando à cidade atravessamos uma ponte que cruzava um laguinho que eu quis fotografar. Pedi para estacionar o carro e, antes de dar dois passos do lado de fora parei imediatamente, completamente chocada! Eu não acreditava nos meus olhos, nem nas sensações na minha nuca, mas naquele exato instante... COMEÇOU A CHOVER! A prova irrefutável está aqui:


Estava chovendo na cidade de menor índice pluviométrico do país, a 200Km de distância de João Pessoa, em pleno cariri! Se Fagner cantava que só deixaria seu cariri no último pau-de-arara, eu confesso que estava topando qualquer meio de transporte, até mesmo disco-voador, se fosse pra escapar para um lugar onde deixasse de sentir pingos de água na cabeça!

E olhem que o risco de encontrar um marciano foi grande. Se Cabaceiras é bom cenário de filmes, o tal do Lajedo do Pai Mateus é perfeito para um remake de Ichtar Uórs com alteração mínima no figurino daquele cabra-da-peste do Darth Vader. É só substituir o capacete pelo chapéu de couro e a espada laser pela peixeira. O local é uma elevação de pedra, de uns 2Km quadrados, coberta de enormes rochas arredondadas que a gente tem dificuldade em entender como é que não descem rolando ladeira abaixo.


Isso é ainda mais intrigante se considerarmos o fato de que a chuva que nos recebeu em Cabaceiras, embora tivesse parado (uma nuvem passageira que com o vento não se foi), voltou a nos recepcionar no exato momento em que botamos os pés para fora do carro no tal Lajedo, 25Km de Cabaceiras cariri a dentro, o que deixou escorregadio o chão. Vocês podem estar aí morrendo de rir e achando que eu estou aumentando as coisas, mas não é exagero, nem invenção! A canga usada pela minha mãe como proteção da chuva, além dos respingos na lente da máquina não me deixam mentir:


A chuva ainda foi e voltou algumas vezes nesse dia de aventuras por estradas improváveis, passando por locais impossíveis, que não estavam nem no GPS. Literalmente! O importante é que, além de conhecermos lugares interessantíssimos, tínhamos nos afastado de João Pessoa, cuja previsão dos sites meteorológicos era das mais úmidas: tempo nublado e chuva o dia todo!Nossa vantagem foi ter episódios esparsos de chuva e não aquele clima horrível da primeira foto que vocês viram.

A previsão para o dia seguinte era um pouco melhor e realmente o sol decidiu deixar as gracinhas de lado e, enfim, dar as caras no Nordeste. Como estávamos no extremo leste do país, fomos os primeiros a encontrá-lo pela frente. Que alegria!

Foi só por isso que eu não surtei completamente com o seguinte papinho de elevador, cujo assunto é sempre o mesmo de norte a sul do país: meteorologia!

- Bom dia.

- Bom dia.

- Tá difícil de acertar no programa, né? Eles prevêem chuva, mas faz sol. Hoje previram sol. Será que se confirma?

Achei que tinha entendido errado!

- Como assim? A previsão para ontem era de chuva e quando saímos estava chovendo mesmo. E muito!

- É verdade... Choveu ali pelas 8 da manhã, mas depois parou, abriu sol e fez um tempo ótimo o resto do dia. Se hoje já começou com sol, vamos torcer para que eles acertem dessa vez, né? Ah! Eu desço aqui. Até mais...

Ainda demorei alguns andares para conseguir recolher o queixo que estava caído na altura da cintura, mais ou menos. Então aquela nuvem que nunca pára em Cabaceiras nos acompanhou o dia todo? Se eu descobrir quem foi o invejoso que nos pinchou a tal maldição...

Bem, a verdade é que nosso pé-quente foi mais forte e os últimos dias da viagem foram só de sol, céu e mar. Até consegui me despaisar completamente, dessa vez no bom sentido, e ver da minha janela a Ponta do Seixas:


Vai deixar saudades...

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4 comentários:

  1. Pode ateh ser seu preferido ,mas caramba ,naquele lugar nao tem nenhuma arvore ,nenhum banquinho para um cidadao descansar ,nada,e se for igual a outros que fui a escada tb nao tem corrimao e soh tem um banheiro que fica lah no fundao... pode ser lindo mas acho que arquitetura deveria pensar tb no usuario.

    E pode rir ,mas em ingles tb tem umas coisas bacanas ...

    beijos
    denise

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  2. Ju, querida,
    Como disse ontem, agora estou tentando correr atrás dos meus atrasos de leituras....
    Adorei os dois posts.... Já me dizem inclusive de como foi tua viagem.
    Você é e está demais... Esse post todo ilustrado está um luxo de maravilhoso. Muito engraçado também.
    Sei o que falas e já passei por isso de viver férias acompanhada de nuvens... Mas férias, são férias, com chuva ou não... dèpayser é preciso... viver não é preciso.
    Planctoneanamente.
    Um grande beijo.
    Marie

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  3. Denise!
    Tenho de reconhecer esse pequeno "defeito" do Niemeyer: realmente ele não é chegado num verdinho (o que me faz pensar que ele não puxa baseado hahahaha)... As coisas dele são só concreto (o Memorial da América Latina em São Paulo me deixou chocada!). Esse aí acabou de ser inaugurado, até tem umas graminhas por ali que um dia crescerão.
    Banquinho?! Nem sei, tava um toró de dar desgosto! Banheiro, apesar do aguaceiro incentivar, não procurei :-)
    Tenho certeza de que o inglês tem palavras legais! O que é engraçado pra mim é VOCÊ achar isso! :-D

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  4. Marie!
    Vc já tem leitores no meu blog! :-)
    Minha irmã disse que adora seus comentários!

    Vamos ver se marcamos aquele almoço pra fazer nosso dépaysement particular? Terça que vem, quem sabe?

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