sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

E nem precisa ser uma Brastemp!

Desde pequena aprendi que não se deve abrir a geladeira na casa dos outros. A instrução veio assim, pronta de fábrica. Sem questionamentos.

Só que de uns tempos pra cá tenho questionado tudo o que me foi imposto. E aí fiquei pensando: “não se deve abrir a geladeira na casa dos outros”. Tá. Por quê? Qual é o risco que corremos ao expor nossa pobre e indefesa geladeira? O perigo, amigo leitor, é que não existe coisa mais reveladora do que uma geladeira. É assustador!

Em primeiro lugar, a geladeira esconde em sua barriga aquilo que virá parar, inevitavelmente, na nossa. Dá pra dizer que a geladeira é uma pré-barriga.

Bois e vacas são chamados de ruminantes porque vão comendo, comendo, comendo e guardando tudo no rúmen. Só param de botar coisas pra dentro depois que o rúmen está cheio. Aí fazem voltar tudo pra boca e só então é que vão mastigar, digerir. A geladeira é nosso rúmen!

E qual é o problema de revelarmos o conteúdo do objeto que guarda o que habitará transitoriamente nosso ventre? Vou adaptar um velho ditado. A partir de agora será: “mostre-me o que tens na tua geladeira e te direi quem és”.

Daria até pra criar um novo reality show, uma espécie de Big Brother gastronômico. Câmeras seriam instaladas em cozinhas anônimas e os participantes ficariam diante de monitores de televisão que mostrariam o conteúdo de geladeiras. Ganharia aquele que, só de olhar esses conteúdos, fosse capaz de dizer quem mora naquela casa.

Loucura? Impossível? Acompanhe comigo.

Você abre a geladeira e vê uns refrigerantes sem açúcar, algumas latinhas de cerveja, uma caixa de leite desnatado, uma maçã e meio queijo branco. Quando a porta é aberta, ouve-se aquele barulho do oco, a névoa saindo. Sentença: casal jovem e sem filhos! Trabalham fora, almoçam fora. Vida social agitada, jantar com os amigos. Durante a semana, trabalho. Final de semana, balada. A geladeira só existe mesmo como promessa da família que um dia virá. Está lá porque onde já se viu casa sem geladeira? Mas é quase um objeto de decoração.

Um dia os filhos vêm, a geladeira começa a se preencher. Fica grávida como a dona da casa, só que depois dela. Quando as crianças chegam, não se ouve mais o barulho do oco quando ela é aberta. Está plena. Potes de Danoninho, iogurtes, frutas, legumes. Caixinhas de suco. Leite integral. Depois dos filhos já não dá mais pra almoçar num restaurante por kilo ao lado do trabalho. A casa passa a ter almoço todo dia e a geladeira adquire importância, ganha status de governanta, é a prova incontestável de que aquela, enfim, é uma casa de verdade!

Com o correr dos anos algumas coisas mudam como, por exemplo, saem os Danoninhos e entram os refrigerantes. Frutas e legumes são solenemente ignorados pelos filhos adolescentes, mas acabam de um jeito ou de outro mantendo seu espaço na geladeira porque contam com uma defensora irredutível: a mãe, a dona da casa, aquela que reina soberana e absoluta sobre a geladeira e seu conteúdo. Cuida da sua arrumação, limpa, enfeita com ímãs na porta. Mãe e geladeira são cúmplices. Por mais que os filhos adolescentes tentem, não vão conseguir ocupar o espaço das frutas e legumes substituindo-os por refrigerantes e Danetes.

Vêm as brigas, as discussões. A luta eterna entre o prazer puro, simples, irresponsável e a saúde.

“Enquanto você estiver nesta casa sou eu quem diz o que vai dentro desta geladeira!”

“Pois eu não vejo a hora de sair daqui e ter minha própria geladeira!!!”

E aí um dia os filhos saem de casa mesmo! Finalmente têm a tão sonhada geladeira particular, talvez comprada de segunda mão, mas deles! Se você fiscalizar o conteúdo da geladeira de jovens em recente liberdade condicional vai ver, se forem mancebos, cerveja de cima embaixo. Já as moçoilas até podem ter cerveja, mas fatalmente você vai ver também alguma fruta, um queijinho. Meninas são mães em estado de hibernação, não dá pra esquecer. Um dia elas serão também senhoras de sua geladeira familiar.

Agora, se você abrir a geladeira e tiver cerveja de cima embaixo, mas também algumas embalagens de pizza ou de comida chinesa, pode afirmar sem medo de errar: é homem separado! Pode até ser um homem solteiro, mas aí aposto que já passou dos 30. No mínimo. O rapaz solteiro, aquele da geladeira cheia de cerveja, que acabou de sair de casa, está geralmente numa fase da vida em que não existe dinheiro pra pedir comida. E restinhos de miojo não ficam guardados na geladeira, vão pro lixo depois de dias em cima da pia ou do fogão. Já o homem separado, ou o solteirão convicto, geralmente trabalha (tem de pagar a pensão, né?) e pode se dar ao luxo de pedir uma pizza. Que não é de graça. Portanto, os restos de pizza e de comida chinesa vão parar na geladeira e serão descobertos pela faxineira meses depois com uma cabeleira de fazer inveja a Elba Ramalho!

O caso mais difícil de identificar é o da geladeira que tem frutas, queijo sem gordura, leite desnatado, mas também uma ou outra garrafa de vinho, talvez espumante, endívias e potinhos com ervas aromáticas. Situação difícil essa. Seria a prova final desse concurso imaginário. A pergunta que vale um milhão.

Uma geladeira com esse conteúdo pode ser de uma mulher divorciada, sem filhos, ou então solteira, mas já quase na idade da Loba. Só que pode ser também de um homem refinado e sensível que possivelmente nem mora sozinho, mas na companhia de outro ser igualmente refinado e sensível, muitas vezes amante de artes e de música clássica. Homens com os quais as mulheres adoram conversar porque são geralmente cultos e divertidos. Mas fica só na conversa. Quando é pra namorar a mulherada tem de sair atrás de uma geladeira cheia de cerveja mesmo, fazer o que? E não adianta se iludir! Aquela famosa cena do filme “9 ½ semanas de amor” em que o Mickey Rourke faz um banquete em cima da barriga sarada da Kim Basinger é pura ficção! Não existe homem solteiro, que jogue no time dos espadas e que tenha mel e cerejas em calda na geladeira. Esqueçam!

O mais impressionante é que a geladeira conta tudo mesmo! Até fechada! Basta olhar os papéis que ficam suspensos pelos diversos ímãs na sua porta, ímãs esses que também botam seu grão de sal nessa fofoca pra lá de indiscreta.

A geladeira do casal recém-casado e sem filhos vai acolher aqueles recadinhos doces do tipo “Amor, vou morrer de saudades durante o dia. Te amo!” presos por ímãs novinhos em folha.

A chegada dos filhos vai depositar poeira e gordura sobre os ímãs, além de substituir lentamente os recados que passarão a ser pragmáticos.“Não esquece de passar no banco. Hoje é dia de pagar a babá. Beijo”. A porta da geladeira também vai servir de suporte para as receitas do pediatra com as doses do antibiótico, para a lista de material escolar, para o endereço das festinhas dos amigos. Nessa fase os ímãs serão panelinhas, florzinhas, frutinhas, miniaturas em geral. Evocarão as viagens de férias, serão as lembracinhas de nascimento dos filhos dos amigos. Todos esses bibelôs imantados conviverão pacificamente ao lado dos telefones do técnico que conserta o aquecedor, do entregador de água, da farmácia 24 horas e da pizzaria.

Os homens solteiros e jovens não terão ímãs. Sem grana, não dá pra pedir pizza. Completamente desnecessários pra segurar papel. Deixar recado pra quem? E, além do mais, ninguém consegue ler com tanta cerveja na cabeça.

Já os descasados terão uma fila indiana de ímãs de pizzaria e de restaurantes de comida chinesa repousando na porta da geladeira. Eles manterão em suspenso uma ou outra conta pra pagar. E só. Os descasados estarão finalmente livres dos bilhetes amargos como chá de losna que a geladeira da antiga residência exibia.

Posso apostar que em muitas separações a geladeira foi o suporte mediador dos recados insolentes. Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, com exceção da geladeira. Ela é a única autorizada a ficar no meio da disputa e a servir de elo de ligação nessa corrente quebrada. Anteparo nas conversas que não podem mais acontecer frente a frente: “A megera da sua mãe ligou.” ou “A fatura do cartão está em cima da mesa. R$ 200,00 no salão de beleza é absurdo!”. Sábia e imparcial geladeira que fica ali, entre os dois, impávida mesmo quando os pratos voam de um lado para o outro na sua frente.

Fiel geladeira. Onipresença silenciosa nas nossas vidas. Cúmplice das nossas boquinhas da madrugada. Parceira das nossas fugidas do regime. Conviva indispensável na acolhida das sobremesas e bebidas das nossas festas. Conselheira sem palavras. Em quantos momentos não abrimos a geladeira e ficamos ali, olhando seu conteúdo, pensativos, muitas vezes até fechando a porta sem pegar nada? Terapeuta freudiana ortodoxa, daquelas que ficam mudas o tempo todo, a geladeira é quase nosso divã.

Nossa geladeira nos acompanha a vida toda. Caminha ao nosso lado nessa jornada. Começa vazia, vai se preenchendo aos poucos, sustenta os acontecimentos do dia-a-dia, às vezes intermedia as brigas. Depois de muitos anos, ela vai acabar contendo somente coisas saudáveis, livres de colesterol e de gordura trans. Geladeira de avó. Nem ira, nem luxúria. O único pecado que ela vai acobertar é aquele da gula, encarnado num maravilhoso pudim de leite condensado para os netos no fim de semana.

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2 comentários:

  1. Garota!!!....
    Imaginei que estavas cozinhando alguma coisa. Mas a geladeira!?!!?!?!?
    Genial. Concordo com tudo. Adorei a paradinha pensativa sem pegar nada. Ô espelho meu....
    Beijo como sempre.
    Logo logo mando notícias.

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  2. Extremamente grato pela visita.
    Querida há algo sobre a delicadeza de vocês mulheres no meu blog. Abraços imensos.

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