domingo, 16 de março de 2008

Salve-se quem puder

Tirando a casa da nossa avó, todo o resto no mundo se renova. Mesmo o que tem tradição secular, mais dia, menos dia, acaba passando por uma reforminha.

Eu, pobre mortal pecadora, já estava acostumada aos motivos que me dariam um bilhete de primeira classe sem escalas para o inferno: os velhos e conhecidos sete pecados capitais. Gula, luxúria, avareza, ira, soberba, vaidade, preguiça. Só de ler essa lista eu vejo que não tenho a menor chance de salvação. Fui criada nos preceitos da doutrina cristã, que admiro bastante. Mas o Vaticano... definitivamente, ele não me quer no seu rebanho.

Pra mim, não adianta nem tentar escapar do caldeirão de Lúcifer. Olha só o primeiro pecado da lista: a gula. Uma das coisas que mais me dá prazer na vida é cozinhar. Escolher as receitas, sair para comprar os ingredientes, preparar tudo e depois servir aos outros e a mim mesma em sessões de puro prazer descarado e culpado. Inchar minha vaidade com os elogios que ouço na maioria das vezes, felizmente. Claro que uns acidentes de percurso acontecem de vez em quando. Nessas ocasiões, descarrego toda a minha ira contra o forno desregulado ou minha falta de atenção, mas as pizzarias que entregam em casa servem pra que?

A verdade é que nem sei quantas vezes sucumbi diante de uma bela massa cheia queijo derretido, acompanhada de um bom vinho tinto. Ou então diante de uma mesa de café colonial coberta de bolos, pães, tortas, bolachinhas, frios, chás, sucos, geléias... Quem é que consegue resistir? Qualquer um se joga no chão, agarrado aos pés da mesa gritando “Podem me levar pra Satanás, eu não me importo! Mas depois do lanche...”

Não preciso nem continuar com os outros pecados: luxúria? Hummmmm. Preguiça?! É meu sobrenome! Para a Igreja Católica, eu sou uma ovelha irremediavelmente perdida. Diante da impossibilidade de chegar ao paraíso e fazer companhia aos puros de coração e fortes de espírito que conseguem se manter no caminho da luz, e considerando que resistir a esses pecados é muito difícil mesmo, adotei a prática “jaque” que consiste no seguinte: já que eu fraquejo na gula, então não vou mais me preocupar com o resto e vamos aproveitar a vida! Salvem os hedonistas!!!

Eu acreditava que o céu devia ser um lugar com muito espaço livre, imaginando que são poucas as pessoas que conseguem passar ilesas pelos sete pecados capitais. Mas li uma notícia semana passada que me mostrou que eu estava errada! A Igreja Católica acabou de dar uma repaginada nos pecados e lançou uma novíssima lista! Fiquei animada pensando que os antigos tinham caído em desuso, mas não! A lista atual veio para SOMAR novos pecados àqueles que já me atormentavam a consciência. Acho que estava acontecendo algum problema de superpopulação no céu e foram necessárias medidas drásticas para regular a entrada de novos membros.

De qualquer forma, me enchi de esperanças. Quem sabe eu não sairia dos últimos lugares na fila de pecadoras? Podia ser que os novos pecados não me pegassem. Fui correndo ver a tal lista pra ver se conseguia aplacar minha consciência. São seis novos pecados, chamados “sociais”. A idéia é interessante. Explora o fato de que o homem é responsável também pelo que faz aos outros homens em grande escala e não só ali, no miudinho, tipo explodir de raiva com uma fechada no trânsito ou gastar o dinheiro do leite das crianças no salão de beleza. Confesso que enquanto lia isso ia ficando cada vez mais animada. Meus pecadinhos são quase todos inocentes, não vão muito longe, atingem poucas pessoas ao meu redor. Achei que, enfim, eu teria uma chance ínfima, quase raquítica, de salvação!

Mas depois de ler a lista e refletir um pouco, vi morrerem secas e esturricadas minhas esperanças...

Os novos pecados são: fazer modificação genética, poluir o meio ambiente, causar injustiça social, causar pobreza, tornar-se extremamente rico, usar drogas.

Juro que avaliei cuidadosamente um por um. As conclusões foram desanimadoras...

Fazer modificação genética. Eu não sou bióloga, nem agrônoma, nem química, na verdade, passo longe de qualquer coisa que lembre um tubo de ensaio. Mas nem por isso me senti menos pecadora... Tive um câncer, que nada mais é do que um grupo de células mutantes que se reproduzem! Fiz modificações genéticas em mim mesma! E o pior! Como tenho filhos, é possível que tenha transmitido essa característica aos dois, que se tiverem filhos podem transmitir aos netos, bisnetos e assim per omnia saecula seculorum, amém. Sem chance! Se eu tivesse tido o câncer antes de ter filhos, ainda tinha uma possibilidade de evitar espalhar esse pecado por aí. Agora já é meio tarde... Foi só o primeiro pecado da lista e eu não consegui me ver fora da fila dos pecadores. E a continuação não foi mais promissora...

Poluir o meio ambiente. Irremediavelmente perdida! Do paraíso não vou ver nem as plaquinhas de indicação do caminho! Vejam bem, agora carrego dentro de mim uma prótese de silicone. Não sou mais biodegradável! Quanto tempo demora pra se desintegrar uma prótese de silicone? Se um saco plástico leva 200 anos pra se decompor, quanto tempo eu mesma não vou ficar poluindo o ambiente depois que passar desta para melhor?! E nem cremação adianta, já pensei nisso também. Silicone queimado deve poluir o ar, com certeza. Além de não sair da fila, desconfio que fui jogada ainda mais para o fim dela...

Os próximos três pecados devem ser analisados em conjunto, pois pra mim um leva ao outro. O primeiro é tornar-se extremamente rico. Como não dá pra todo mundo ser extremamente rico, uma única criatura extremamente rica na face da terra significa um bom tanto de gente na miséria. Portanto, a chance de quem se torna extremamente rico causar pobreza, é praticamente certa. E num lugar onde alguns têm muito e muitos não têm nada, existe injustiça social. Batata! Digamos que nessa parte eu achei que podia respirar um pouco mais aliviada porque, se conseguisse escapar do primeiro deles, ou seja, ser extremamente rica, escaparia dos demais também. Ilusão. Pura ilusão.

Qual é o conceito de “extremamente rico”? Qual é a moedinha que, ao cair no meu cofrinho, vai me transformar em extremamente rica? E mais, quem é que vai avaliar isso pra dar o veredicto? Se a coisa for feita por comparação eu estou ralada! É bastante evidente que comparada a mega-investidores, jogadores de futebol, artistas de cinema, alguns políticos e por aí vai, eu estou a anos-luz de ser considerada extremamente rica. Mas, basta eu ligar a televisão e ver um documentário sobre tribos na África, ou sobre algumas cidades no nordeste, imagens de favelas no Rio de Janeiro ou em São Paulo ou, mesmo sem televisão, é só eu dar uma voltinha pelo centro da cidade e ver gente que dorme na rua e percebo que minhas possibilidades de salvação são esquálidas e minúsculas. Quando a gente joga uma pedrinha num lago vão aparecendo círculos na água cada vez mais afastados uns dos outros, não? Da África até os sem-teto da minha cidade, a dura realidade da diferença abissal entre a condição de milhares de pessoas pelo mundo e a minha foi descrevendo os círculos como os da pedrinha na água, mas de fora pra dentro, até chegarem e se fecharem sobre mim, pobre pedrinha pecadora atirada no fundo do lodo enquanto aguarda as chamas eternas. A sentença sobre a minha condenação já está sendo escrita no supremo tribunal divino, sem chance de apelação.

Mas ainda faltava um pecado a analisar. Quem sabe? Uma única chance de não sair completamente desmoralizada dessa avaliação. Vamos ver: usar drogas. Depois de oito sessões de quimioterapia falar em usar drogas pra mim é até piada. Mas considerei que drogas com prescrição médica seriam uma espécie de “atenuante” nas avaliações do tribunal divino. Eles deviam estar falando de drogas alucinógenas, que dão barato, aquelas coisas. Que alívio! Pelo menos um!!! Na minha ficha policial dos arquivos de S. Pedro não consta uma única experiência com drogas. A não ser que... Álcool também é considerado droga? Tipo assim, tomar uns pileques, dar uns vexames, dançar a macarena em cima de uma mesa de bar com uma gravata amarrada na cabeça? É, meu povo, não tem jeito mesmo. Meu lugar é, definitivamente, ao lado do Coiso-Ruim, do Cramulhão, do Chifrudo. Se por um lado tenho o consolo de pensar que não vou estar sozinha na casa do Tinhoso, por outro, tenho pavor de multidões e detesto calor. Que azar!

Não é de desanimar? O céu, definitivamente, não é um lugar feito para seres humanos! As metas a serem atingidas pra chegar lá estão além das nossas possibilidades, a Igreja Católica acabou de mostrar isso. O pessoal do Vaticano ocupará sozinho o paraíso. Ficaremos todos os outros, reles mortais pecadores, na companhia de Belzebu, sem orientação espiritual, nem nada.

Pensando bem... Acabei de me lembrar de uma notícia que ouvi no ano passado sobre quanto o Vaticano gastou nas últimas férias de verão do Papa Bento XVI. A módica quantia de um milhão de Euros. Só isso. Um milhão de Euros para custear as despesas do Papa e da sua comitiva durante o merecido descanso nos meses de verão.

Um milhão de Euros é bastante dinheiro, não? Acho que dava pra financiar uma boa pesquisa que encontrasse alternativas à manipulação genética. Ou, quem sabe, poderia ajudar num projeto de despoluição de um rio, ou de reflorestamento, sei lá. Pensando bem, um milhão de Euros aplicados numa tribo de algum país da África daria pra diminuir um pouco a diferença social, não daria? E quantas pessoas será que poderiam ser mantidas num programa de desintoxicação e recuperação de drogas com um milhão de Euros?

Acabei de ficar mais animadinha! Iremos todos para o inferno, com certeza. Mas já não estaremos sozinhos. Ufa!

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2 comentários:

  1. Ju, estou preparando uma super cesta de piquenique com delícias que vao deixar o coiso-ruim com água na boca. Tenho uma mesa e uma churrasqueira reservadas nos quintos dos infernos. Talvez seja uma boa idéia convidar o Bento para ir com a gente. O que você acha? Domingo depois da missa está bem?
    Grande beijo
    Eugenio

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  2. Maravilhosa!!!
    Bem, como vais sim, pro inferno a partir de tuas próprias conclusões, podes ir preparando um banquinho num lugar quente mas maneiro para ir daando os autógrafos. Vais como escritora com certeza. E tem mais, sem dúvida terás que explicar como conseguisses subornar o pessoal do hospital para colocarem na tua quimio alguma droga muuuiiiittttoooo inspiradora.
    Adorei como sempre. Melhor ainda que a geladeira.
    Acho que o inferno não deve ser tão ruim afinal, se gente como você vai para lá.
    Eu, que tenho meu lugar reservado há tempos desde muito já estou gostando da companhia. Agora mais ainda.
    Beijo enorme. Você torna o inferno promissor e a vida aqui cheia de estórias.
    Bacio
    Marie

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