sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Eu, eu mesma e muitas outras

Em novembro passado reencontrei um amigo muito querido com quem eu não conversava há anos. E-mail vai, e-mail vem e ele fez uma pergunta que me pôs a pensar. Ele queria saber como eu o via quando nós dois tínhamos 16 anos.

Ao responder a pergunta dele, tive de pensar em mim mesma. Em como eu era quando tinha 16 anos. Confesso que lembrar que o número que eu via quando subia na balança era muito diferente do que vejo hoje me deixou meio deprimida. Mas, definitivamente, não é sobre esse assunto que eu quero falar!

Quero falar das várias Julianas que estão espalhadas por aí na cabeça das pessoas que me conheceram ao longo da vida.

Exatamente. Várias Julianas!

Estou convencida de que existem clones meus passeando pelo imaginário de quem ainda lembra que me conheceu um dia, mas perdeu o contato comigo desde então. E a certeza de que isso acontece vem de um scrap que encontrei na minha página do Orkut. Ele veio de uma outra amiga, que conviveu comigo lá pelos 16, 17 anos. 20 anos depois ela me encontra e, logo depois do clássico “E aí? O que tem feito? Casou? Trabalhou? Engordou?” (Ops! Eu disse que não queria falar disso hoje!!!), deixa a seguinte pergunta:

Você já gravou um CD?

Gravar CD?!! Eu?!!

Imediatamente lembrei de um dia em que fomos, a família toda, pra um hotel próximo do litoral aqui do Paraná, comemorar os 60 anos do meu pai. Fora de temporada, hotel vazio, tudo à nossa disposição. Inclusive um aparelho de karaokê numa sala de jogos. Como só estava a gente mesmo, me aventurei no microfone e soltei a goela. Logo no fim da primeira música minha irmã entrou na sala vinda de não sei onde e disse:

- O que tá acontecendo? O karaokê tá estragado? Lá de fora a gente ouve uns sons agudos, esquisitos!

Soltei discretamente o microfone e falei:

- Que engraçado, não tinha ninguém cantando!

E agora aquela amiga vinha me perguntar de CD?! Ela devia ter se enganado de Juliana, obviamente. Claro que eu perguntei do que ela estava falando e a resposta foi:

Nos encontros você cantava tanto! Tinha uma voz tão linda que eu tinha certeza de que um dia se transformaria em cantora profissional.

Vocês não sabem da maior: era VERDADE! Realmente eu cantava nos encontros de jovens que fazíamos. Não só cantava como puxava o coro feminino. Adolescente, ensaiava músicas com os pais dos outros adolescentes que recebíamos para fazer a formação de Crisma. Cheguei a cantar em missa de Bodas de Prata. Fazia primeira voz, segunda voz, back vocal! Eu cantava MESMO! E não era só no chuveiro!!!

Desde o dia em que eu e a Katya nos vimos pela última vez, foi como se duas Julianas passassem a existir: eu mesma, e a minha imagem que ficou na lembrança da Katya. O problema é que eu fui pra um lado, e a imagem de mim que morava nas memórias da Katya tomou outro rumo. Hoje, muitos decibéis e linhas melódicas me separam desse clone canoro.

A partir de então, comecei a dar tratos à bola e iniciei a divertida tarefa de tentar imaginar quantas outras versões de mim podem existir por aí e como elas seriam.

Tem a cantora, já devidamente apresentada.

Como eu disse, esse verdadeiro rouxinol fazia suas apresentações em reuniões preparatórias pra Crisma, em grupos de jovens, em missas, etc. Nessa época eu era tão engajada nesses grupos, mas tão engajada, que no colégio chegavam a me chamar de “Irmã Juliana”. Portanto, tem uma versão minha de hábito de freira, de terço na mão, entoando cantos gregorianos nas missas das seis da manhã em alguma igreja católica.

Embora eu não tenha abandonado minhas crenças cristãs, igrejas católicas eu não freqüento mais. E cantar... Bem, já demonstrei que o gogó enferrujou completamente há pelo menos 8 anos (o karaokê NÃO estava quebrado!).

Um pouco mais tarde, no último encontro de jovens do qual participei, em Maringá, na companhia do mesmo amigo lá do começo, fiquei responsável por comandar uma atividade física logo de manhã pra acordar a galerinha. Eu tinha 19 anos e, naquela época, freqüentava aulas de aeróbica. Três vezes. Por semana? Não! POR DIA! Isso mesmo! Eu estava desempregada, fora da faculdade, matriculada num cursinho que não via minhas fuças por lá com muita freqüência, então, sem nada melhor pra fazer, ia pra academia de manhã, de tarde e de noite! Cheguei quase a ser selecionada pra participar da equipe que representaria a academia num concurso de aeróbica!!! Conhecia todos os movimentos, as músicas, os ritmos. Então, naquele encontro, dei aula de aeróbica pra umas 40 pessoas no jardim! Isso me leva a crer que tem gente em Maringá que pode estar convivendo com uma versão minha que já lançou DVD de ginástica, que está a ponto de editar um livro de dietas, corre maratonas e patrocina uma linha de roupas esportivas!

Lembrando do número obsceno que eu vi na balança hoje de manhã (mas eu disse que não queria falar disso) vou só acrescentar que atualmente faço caminhadas umas três vezes... por mês! Só porque estou consciente de que o coração precisa disso, e nada mais! Minha dieta ideal seria uma pirâmide como aquelas que a gente vê por aí nos guias nutricionais só que nas proporções exatamente invertidas, ou seja, na base da pirâmide apenas açúcares e gorduras de todo o tipo, pra depois virem as massas e pães, um pouquinho de proteína e lááááááá na pontinha um ínfimo espaço para frutas, legumes e por aí vai. Claro que se eu insistir na geometria dessa pirâmide, vou encarnar outras figuras, mais precisamente, a esfera. Portanto, como não dá pra seguir nessa linha, vou ziguezagueando pelas retas e ângulos em que a vida me botou, derrapando nas curvas, principalmente nas minhas, e esbarrando em sólidos nos quais, quando a gente sobe, aparecem aqueles números e ai.... vamos mudar de assunto!

No quesito esportes, além das caminhadas, só mesmo volley. Pela televisão. E 3 sets no máximo porque 5 me deixam esgotada! Definitivamente, a versão bombada-sarada-saudável se estiver fazendo jogging por aí está a anos-luz de distância de mim.

Mas a verdade é que aos 19 anos eu andava nessa vidinha mansa de academia, cursinho (sei!) e outras coisinhas mais.

Tudo isso porque tinha começado uma faculdade de Arquitetura e, depois de um ano e meio, decidi que minha vida não era pra ser construída em pranchetas nem planejada em maquetes. Resolvi trancar o curso, me matricular no tal cursinho (sei!) e fazer vestibular pra Informática. Dá quase pra dizer que são áreas afins, não dá? De Arquitetura para Informática. Tudo no bloco de Exatas, pelo menos.

Isso quer dizer que existe uma versão discípula de Niemeyer, projetando estruturas, embelezando praças, edificando os sonhos dos outros... Ela deve ser legal... Mas tão falsa quanto as outras. A verdade é que, enquanto eu aguardava longos meses até o novo vestibular, ficava ali, de casa pra academia, da academia pro cursinho (sei!), do cursinho pra Biblioteca Pública (sempre adorei os livros), da Biblioteca Pública pro cinema, do cinema pros papos pelo telefone, dos papos pelo telefone pras saídas com aquele amigo lá do começo: lanches, conversas filosóficas, ensaios de peças de teatro (ainda teve isso!), passeios pela cidade: XV de Novembro, Santos Andrade, Rui Barbosa... só coisa muito útil!

Claro que meu pai achou que a moleza estava grande demais e, um dia, mais precisamente numa terça-feira à tarde, eu atendo ao telefone e, em vez de um convite pra balada, ouço o seguinte:

- Amanhã você começa a trabalhar no banco, tá? Arrume seus documentos pra levar na agência do Portão. Converse com a Guiomar. Tchau.

Assim. No seco.

Em novembro de 1989 minha Carteira de Trabalho recebeu o primeiro carimbo: atendente no Banco Itaú S.A. Abrir contas, atender ao telefone, preencher depósitos, tirar extratos, vender planos de capitalização, incentivar aplicações tudo isso com um salário no fim do mês! Inacreditável!!! Comprar roupas, lingerie, fazer a unha. Comprar sapato, ir ao cinema, comprar bijuteria. Comprar livros! Tudo isso sem pedir nada pra ninguém? É o paraíso! Fazer poupança como eu recomendava aos clientes do banco? Nem pensar! O negócio era aproveitar a nova vida no recém-descoberto mundo dos adultos, sair com a turma do trabalho e fazer muita festa! O programa preferido do grupo era ir a bailes gauchescos na periferia da cidade. Aprendi todos os passos das diversas danças e quase comprei um vestido de prenda! Mas entre o vestido e uma bota nova, preferi a bota...

Chegamos então, à minha versão bancária, quiçá banqueira, conhecedora do mercado financeiro e dançarina de vanerão. Além disso, fã do Grupo Minuano, vestida ora de tailleur, ora de prenda, de cuia de chimarrão em punho analisando o movimento da Bolsa de Valores e tentando encaixar o ritmo da Bovespa ao de uma milonga. Mas bá, tchê!

Meu futuro no mundo dos grandes investidores começou a se desvancer depois de estar escalada para ser a telefonista da agência no exato dia em que despencou sobre nossas cabeças o Plano Collor. Vocês se lembram do Plano Collor, né? Aquele que confiscou cadernetas de poupanças, saldos em conta corrente, valores aplicados. Tudo isso em uma madrugada, deixando aos bancos e seus perdidos funcionários a tranqüila tarefa de refazer todos os sistemas e informar claramente os clientes sobre as regras de um plano absurdo que ninguém conseguia compreender, nem mesmo quem o tinha elaborado. O que dizer de uma reles telefonista de 19 anos? Eu não consegui mais manter a sanidade e só queria uma coisa: sumir dali! Já estava fazendo faculdade de Informática, aproveitei a necessidade de uma demissão voluntária no banco e ergui o mais alto que pude a mão, despindo a saia de prenda e deixando pra trás também minha vida de bailes gauchescos.

Virei estagiária de informática do setor de treinamento de outro banco, o Bamerindus. Minha responsabilidade era produzir o material didático dos cursos, apostilas, transparências, etc e tal. Entrei de cabeça nos programas de desenho e, mesmo tendo mudado de estágio depois de alguns meses, ainda continuei investindo na criação de materiais de treinamento, na diagramação de jornaizinhos, Corel Draw e tudo o mais. Coloquei meu corpo no mercado (editorial gente, peraí) e fiz trabalhos de editoração pra várias pessoas. Cheguei até a publicar na Gazeta do Povo uma propaganda para o Instituto Paranaense de Cegos escrita e editorada por mim. Era início da década de 90 e o Brasil todo se embalava ao som de Leandro e Leonardo, músicas que eu conhecia de cor e que cantava a plenos pulmões. Hoje, minha versão diagramadora deve ir a shows de Edson e Hudson enquanto cria cartões de visita e papéis timbrados, talvez para agentes musicais, quem sabe? Hummmm acho que não quero encontrar essa por aí.

Prefiro a outra versão da mesma época, aquela que na faculdade de Informática participava de campeonatos de truco nas noites em que não enfileirava copinhos de batidas de vinho acompanhadas de polenta e meios peitos de frango fritos na Casa di Frango. Fim da geração saúde. Aulas noturnas (quando eu ia às aulas, obviamente), estágios abandonados, fã da Rê Bordosa, vida sedentária, etílica, boêmia, e nada, nada, nada publicável. Que horror! Prendam essa minha versão enganosa já! Ela está atrapalhando as orações da versão Freira e bagunçando as aulas de ginástica da versão Sarada, coitadinhas...

Ainda bem que ao terminar a faculdade entrei para o mundo acadêmico. Usava até óculos de aro de tartaruga, paletós e gola rolê. Dava aulas às 7h30 da manhã! Algoritmos, raciocínios lógicos. Fazia programas. De computador! Mas que mentes mais poluídas!!! Estava noiva, mais respeitável impossível. A primeira vez que um funcionário da faculdade me chamou de “Professora” olhei pros lados pra ter certeza de que era comigo mesma que estavam falando.

Muitos alunos passaram pelos meus livros de chamada. Foram quase 10 anos de sala de aula, ensinando os mistérios do computador. Tive alunos desde a pré-escola, passando pela oitava série, ensino médio, faculdade, cursos de pós-graduação, preparatórios para concurso... Cheguei a ser sócia em uma escola de Informática. Professora 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano. Especialização, mestrado, parecia que, enfim, uma versão definitiva e próxima do que sou hoje estava nascendo. Juntas caminhariam de mãos dadas, só que...

Vieram os planos de ir para fora do país por um tempo. Enquanto esperava pelo carimbo no meu passaporte, fiz outro vestibular (sem cursinho dessa vez) e comecei um novo curso superior: Letras. Nem a área era mais a mesma. De Exatas para Humanas, uma guinada de cento e oitenta graus. Mudei de bloco e de foco! Os anos de aeróbica, no fim das contas, tinham ajudado na elasticidade porque vivi por um tempo com um pé em cada centro acadêmico. Atividades que não podiam ser mais distantes.

Nessa época, ia pra aula como aluna às 7h30 da manhã na UFPR pra discutir Homero, Ilíada, Odisséia. Mal a aula acabava, saía me despencando pelas ruas de Curitiba pra entrar às 9h30 em ponto nos laboratórios da PUC e mergulhar nos bits e bytes dos programas em linguagem C dos meus alunos. No meio do caminho ia tentando não ultrapassar o limite de velocidade enquanto chaveava o cérebro pra mudar de um assunto a outro. Não enlouqueci. Será que não mesmo?

Conseguimos realizar o tão sonhado plano de morar fora do país e fomos pra França. De um dia para o outro passei de aluna e professora universitária a dona-de-casa. Minha vida se transformou em faxina, crianças, escola, pediatra, cozinha... Descobri um mundo! Ia maravilhada ao supermercado e passava horas diante das prateleiras de produtos de limpeza, imaginando o que fariam. Testei vários, aprendi milhões de coisas. Virei cozinheira e, modéstia à parte, meus quitutes marcaram estômagos e mentes. Tanto que lá pelas terras do Asterix vive uma versão dona-de-casa exemplar, cozinheira de mão cheia, mãe sempre disponível para acompanhar nos passeios da escola ajudando a professora a cuidar das crianças...

A faxineira, definitivamente, ficou por lá! Mas o resto voltou, e está aqui bem perto desta versão que vos escreve... Meus quitutes continuam marcando estômagos e mentes sempre que eu tenho a chance de chegar perto do fogão. Nenhuma modéstia. A versão atual é bem mais segura do que as outras que andam, vacilantes, por aí...

Também sou quilteira, costureira, rendeira. Pensando bem, só as atividades manuais são constantes na minha vida, desde os sete anos de idade e incontáveis saias-tubo para minha boneca Susi. A versão artesã é a única que resiste à passagem do tempo. Já fiz de tudo. Atualmente, crio meus projetinhos de patchwork que em breve estarão disponíveis ao mundo quilteiro e, de quando em vez, solto meus dedinhos pelo teclado pra vir aqui contar essas coisas aos meus cinco leitores (Sim! Descobri mais um!). O curso de Letras continua e estou me preparando para voltar a ser professora, agora de Francês.

O que será do futuro? Há 20 anos eu seria cantora ou freira. Hoje sou costureira e cozinheira. Logo voltarei a ser professora. Todas essas, e também as outras versões de mim, estão agora aqui ao meu lado, olhando sobre meu ombro, lendo o que eu escrevo... Nesse exato momento elas até fizeram um silêncio momentâneo (como falam! Isso é o que todas têm em comum!) e olham pensativas para o teto.

Decidido! Encontro marcado em 20 anos pra saber quantas e quais outras existirão! Se é que eu vou ter energia pra continuar mudando tanto de rumo assim. Quem sabe? Só o futuro dirá. Mas a única coisa que eu desejo que ele me conte é que o número que aparece na balança, definitivamente, despencará!

Mas será que eu vou conseguir NÃO falar disso?! Que coisa! Versãozinha mais desobediente essa atual...

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4 comentários:

  1. Hehe....
    Pra variar, vou dizer que adorei esta também....
    Menina, ser humano é multidão mesmo... nem!!!
    Você faz a gente pensar... mas nem pensar em escrever sobre as minhas outras... a maioria TOTALMENTE proíbida e censurável...
    Aqui vai minha sempre admiração e minha pseudo identidade. De ora in poi, la mia impressione del tuo scrito, firmo così.
    Baci tanti.

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  2. Olá!

    Passei por aqui...
    Gostei do blog!!!

    Abraços pernambucanbaianos...

    Germano.
    www.clubedecarteado.blogspot.com

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  3. Um texto de muito fôlego esse. Ao mesmo tempo em que de grande sensibilidade poética. Abraços.

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