sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Ponto final. Seguido de reticências...

19 de junho de 2007.

Há dias que a gente sabe que mudarão nossas vidas. Antecipamos a sua importância e esperamos por eles. Assim é com casamento, formatura, nascimento dos filhos... Entretanto, existem aqueles dias que marcam profundamente a nossa existência, mas cujos créditos só podem ser dados depois. Às vezes, bem depois.

Quando aconteceu aquela catástrofe da Tsunami na Indonésia, o que vi pela televisão foram as imagens da destruição. O que sobrou depois que o mar explodiu sua fúria sobre a terra. De acordo com as descrições dos jornais, eu imaginava que a Tsunami tinha sido uma onda inesperada, sim, mas gigante. Como um Godzilla que tivesse levantado subitamente do fundo do mar azul e despencado estrondosamente seu corpo sobre as cidades indefesas e seus cidadãos desavisados.

Porém, um ano depois do ocorrido, assisti a um documentário que mostrou imagens do momento exato em que a tal onda invadiu as cidades. Eram imagens de turistas e moradores que estavam por ali com suas câmeras a postos para registrar alegres férias de verão e que viram aquela água vindo, vindo, vindo...

A tal da Tsunami não chegou na forma de uma onda imensa como as que assombram meus pesadelos. Pelo menos, não naquele 26 de dezembro de 2004. Era uma onda baixinha. Aparentemente inofensiva. Tanto que algumas pessoas ficaram filmando a sua vinda, outras observaram sua chegada na beira da praia sem a menor noção do que estava a caminho. Quanto a nós, sabemos o resultado da sua passagem devastadora. Pouco ficou de pé e o que restou não era mais a mesma coisa. A onda veio, invadiu, carregou e, mesmo com uma dimensão física relativamente pequena, atingiu as estruturas de sustentação de edifícios que ruíram, alguns em parte, outros por completo. Praticamente uma reedição do episódio Davi contra Golias.

Tive também a minha Tsunami particular. E ela chegou exatamente no dia 19 de junho de 2007, uma terça-feira como outra qualquer e que transcorreu sem nada de especial até que, ao voltar para casa à noite e sentar no chão para brincar com a Ana Luíza, encostei acidentalmente no meu seio esquerdo e senti um caroço que nunca tinha estado lá.

Hoje, vinte meses depois, sou capaz de reconhecer a importância daquele 19 de junho na minha vida. Talvez seja surpreendente para alguns o fato de que não considero, nem jamais considerarei, aquele como sendo o pior dia da minha vida. Da mesma forma como não tenho na minha biografia um dia específico que eu possa classificar como tendo sido o melhor de todos.

Dizer isso, para mim, soa como fim de festa. Se eu acreditasse na felicidade ou tristeza absoluta e inegável de um único dia que, ainda por cima, já passou, sentiria que o que havia de mais importante para acontecer já aconteceu e que eu estaria dali em diante vivendo a benevolência de uma espécie de minutos de acréscimo do Grande Juiz. Não! Prefiro pensar que tive momentos muito felizes e muito duros no passado, mas que minha vida não está lá atrás de maneira alguma. Tampouco está à minha frente. Minha vida está aqui, agora, neste momento em que inspiro e expiro. Ela acontece nesta mesa de café de um shopping, no instante exato em que escrevo este texto. Definitivamente, minha vida não está no futuro e esse foi um dos muitos e grandes aprendizados desse câncer.

A partir do dia em que a morte deixa de ser uma possibilidade incerta no tempo e passa a ser uma mera questão de probabilidade estatística, as coisas todas ganham e perdem boa parte do sentido que sempre tiveram. Sei que muitos livros de autoajuda dizem isso. Recebo dezenas de e-mails todas as semanas que repetem essa ideia de todas as formas. Mas uma coisa é ler e pensar sobre a nossa finitude. Outra, bem diferente, é vivê-la concretamente. Ter nas mãos um papel que transforma a crença de haver um resto dos nossos dias a viver numa eventual porcentagem de sucesso ou fracasso na capacidade de defesa do organismo muda tudo. E não há livro ou pensamento que nos prepare para esse momento. Não há nada que indique qual será a nossa reação, ou qual atitude adotaremos desse dia em diante. Não há como ter noção da intensidade da força dessa onda que atinge a nossa vida ou exatamente qual será o resultado da sua passagem por nós.

A única coisa certa é que todas as estruturas serão abaladas, crenças arraigadas serão destruídas, sentimentos, emoções, identidade, tudo mudará no todo ou em parte. Mudará por dentro e por fora. Mudará para quem está próximo e para quem está distante. A única certeza possível é que depois de viver essa experiência, emergirá uma nova pessoa, construída sobre novas bases, e o que, ou como ela será, assumirá a forma de um gigantesco ponto de interrogação.

Acredito que um câncer não é a única situação capaz de provocar tamanho abalo. Nos poucos segundos que levei para escrever essa frase lembrei de três ou quatro outras situações igualmente transformadoras. Tão ou muito mais terríveis do que esta pela qual passei. Realmente, viver um câncer é terrível, mas a cada dia, menos assustador.

Sou e serei eternamente grata à medicina e aos médicos que cuidaram do meu corpo. Assim como serei igualmente grata aos profissionais que cuidaram da minha mente. Infinitamente grata eu serei às dezenas, e dezenas, e dezenas, e dezenas de pessoas conhecidas e desconhecidas, declaradas e anônimas, que cuidaram do meu espírito!

Viver essa experiência traz dor, é claro. Mas traz recompensas em iguais proporções, desde que estejamos de corpo, mente e alma abertos para reconhecê-las.

Por um tempo, perdi minhas forças e minhas defesas. Por alguns meses, perdi meus cabelos e meus cílios. Em vários momentos, perdi a mim mesma para me reencontrar, ora ferida, ora guerreira, no sobe e desce incessante do humor, da fé e da angústia. Em algumas noites, perdi o sono. Para todo o sempre, perdi uma parte de mim, do meu corpo de mulher.

Mas cada perda trouxe consigo uma conquista. Ganhei apoio, ganhei carinho, ganhei confiança em mim e na minha capacidade de luta. Ganhei amigos, ganhei experiência. Principalmente, ganhei mais uma chance de vida!

Ter sobrevivido a um câncer não faz de mim uma pessoa especial. Não sou melhor, nem pior, do que qualquer outro ser humano que divide comigo o espaço neste mundo, cada qual com seu programa de aprendizado, nunca muito fácil, a seguir. Mas, quando paro diante do espelho, não posso negar que sinto orgulho da pessoa que vejo refletida ali. Cheia de virtudes e de defeitos, com os quais, principalmente esses últimos, consigo agora conviver e que sou capaz de aceitar com humildade. Sinto que sou vitoriosa e que terei para sempre esse momento de glória na minha biografia.

Entretanto, por melhor que seja o filme, uma hora ele tem de chegar ao fim. Não quero, de maneira alguma, viver o resto dos meus dias sobre as glórias do passado. Por isso precisava botar um ponto final nesse capítulo e isso foi feito no dia 20 de fevereiro de 2009. Exatos vinte meses depois da chegada da minha Tsunami particular. Fim dos exames, fim dos tratamentos, fim das cirurgias. Fim!

Imagino que essa experiência me levará a viver outras tantas como consequências diretas dela. É claro que meu caminho daqui por diante será marcado pelas limitações que antes eu não tinha. Será igualmente pontuado pelos controles que antes eu não fazia. É evidente que terei as passagens periódicas pela Casa Assombrada (o laboratório de exames) na qual terei encontros marcados com meu Gasparzinho particular. Mas essas serão outras histórias, novos capítulos.

Acredito a cada dia com mais força que preciso colocar pontos finais nas tramas que escrevo na vida. Encerrar ciclos. Renovar enredos. Por isso quis marcar esse fim. E fiz isso na sexta-feira passada de maneira muito especial e significativa.

Quem me acompanha há tempos vai se lembrar das comemorações oficiais aqui de casa, porque já tive a felicidade de anunciar outras tantas boas notícias. Semana passada foi, portanto, dia de comemoração oficial e de gala, ligeiramente alterada na forma, porque as crianças estão crescendo e já manifestam algumas vontades, mas totalmente inalterada na essência. Sexta-feira passada foi dia de tigelas de brigadeiro invadidas por quatro colheres gulosas no sofá da sala, com filme da Disney na TV.

A felicidade é uma coisinha realmente banal!

Agora é guardar lembranças, fechar caixas, sacudir migalhas, virar a página, respirar fundo e levantar o olhar aguardando ansiosamente as cenas (absolutamente inéditas!) dos capítulos que estão por vir...

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8 comentários:

  1. Humorados, comoventes ou simples constatações é sempre bom
    acompanhar seu blog.
    Ju, em comemoração hoje vai ter uma tigela de brigadeiro aqui tambem!
    Bisou!

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  2. Ju, o que mais admiro em você como escritora é como você faz parecer que todos os assuntos para você são simples. Não importa a complexidade dos fatos e emoções, as palavras chegam à nos com tal fluidez e nos envolvem de tal sorte que de imediato compreendemos. Sim, compreendemos, e não apenas o que se passou e o que você sentiu, mas o que há para aprendermos e apreendermos sobre o que nos foi dito. Cada vez que eu leio um texto seu, sinto que "sou" um pouco mais. É isso que gosto em você como escritora.

    Obrigada por escrever.

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  3. A felicidade é uma coisinha realmente banal!
    Juju, você definiu tudo, tudo mesmo, que bom que posso compartilhar esta experiência contigo, vc não sabe a felicidade que sinto lendo teu texto.... super beijo pra ti.

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  4. Ju, sem ponto final a vida vira uma frase arrastada, entrecortada, feito ladainha ou labiríntica, toda fragmentada e até caótica. Com ponto final há lugar para o discurso, direto ou indireto, há lugar para outras palavras e, sobretudo, novas idéias, para a polissemia, para a metáfora, para novo contexto, para mais tempo e também mais vida. Você me mostrou onde fica a tecla do ponto final. Obrigado e obrigado (.)

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  5. Ju,
    Obrigada! Obrigada! Obrigada!

    Beijo

    Carol "renovando enredos" Toson

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  6. O que dizer sobre tudo que li neste momento tão especial em nossas vidas.. é que muita coisa penso como vocÊ e muitas pessoas também... com certeza nos tornamos pessoas diferentes e mais ainda vemos como tantas e tantas pessoas nos ajudam mesmo.. principalmente espiritualmente. esse foi meu maior presente!bjus eu tenho um carinho enorme por você. Monica Weber de Carvalho

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  7. Não sabia, moça...

    Beijocas mil e: BEM VINDA DE VOLTA! HOORAY!

    Ralph

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  8. Querida,

    Você é mestra em colocar ponto final.
    Aliás, ponto final, pontinhos no meio, ponto inicial.

    Pontos, pespontos, trespontos. Todos contigo mesma.

    Nas roupas, nas colchas, nos contos, na vida.
    Bordar histórias é contigo.

    Pespontar paninhos nem se fala.

    Você é mesmo muitas. E todas muito bem acabadinhas. ( No bom sentido peloamordeDeus. ) Do direito e do avesso.

    Adoro aprender com você os pontos e pespontos da vida.

    Lindo post.

    Agora, diga lá: Nunca estive tão atrasada né????

    Beijo
    Marie

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